São Paulo, sábado, 27 de setembro de 2008

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LIVROS

Crítica/"Crônica de uma Vida de Mulher"

Schnitzler vê lado "recalcado" da decadência chique de Viena

Contemporâneo de Freud, autor retrata época em perspectiva feminina e "subalterna'

MÁRCIO SELIGMANN-SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Arthur Schnitzler tornou-se um autor consagrado graças às suas novelas, seus contos e suas peças de teatro. Nelas, ele coloca em cena o mundo decadente do fim-de-século do Império Austro-Húngaro. Tornou-se um lugar-comum tratá-lo como o "Freud da literatura", e o próprio pai da psicanálise alimentou esse mito, ao escrever, em uma carta de 1906, que sempre ficou impressionado com a "ampla concordância" de ambos em questões psicológicas e, em particular, ao tratarem do erótico. Schnitzler publicou apenas dois romances, um deles justamente o que acaba de ser traduzido entre nós, "Therese - Crônica de uma Vida de Mulher", publicado originalmente em 1928, sendo, portanto, uma obra tardia do autor, que morreu em 1931. Peter Gay, não por acaso, no seu projeto de escrever uma história da classe média no século 19, utilizou a obra de Schnitzler como seu fio condutor e batizou este estudo com o título eloqüente "O Século de Schnitzler". De fato, este autor vienense conheceu como poucos aquilo que apresentava em sua ficção. Ele fez de sua vida um verdadeiro exercício literário: mergulhava na sua sociedade para melhor explorá-la e analisá-la em suas obras. Espécie de Casanova, suas centenas de amantes -documentadas em seu impressionante e detalhado diário- são prova de que muito do que escrevia era calcado em sua própria vida. Ele, em vez de sublimar suas energias sexuais para escrever, levava a vida sexual a um cume, de onde extraía sua literatura.

Vida passo a passo
A história de Therese não foge a esse padrão, mas ela difere do resto de sua obra por se tratar de um romance. Não que este livro seja um típico romance. Thomas Mann, entusiasmado com esta obra, escreveu na ocasião que "este romance, como todos bons e importantes hoje, não é mais um romance". De fato, Schnitzler o denominou de crônica, e este gênero medieval marca a sua forma: acompanhamos passo a passo a vida de Therese, filha de um militar (que emblematicamente morre louco em um manicômio) e de uma nobre decadente (romancista de folhetim), que para sobreviver se muda de Salzburg para Viena, onde vive como preceptora de crianças da classe média alta. A cronologia avança de modo quase mecânico e implacável. É como se a realidade engolisse as subjetividades no romance. O histórico e a estória do terrível destino de Therese se entrelaçam sob o rigoroso -e às vezes monótono- ritmo da crônica.

"Carne de caça"
Esse ritmo é adequado à figura psicológica de Therese, que é apresentada como uma mulher que, apesar de não querer se submeter à poderosa hierarquia social da sua era, sucumbe e se torna "carne de caça" para uma sociedade masculina na qual a libido explode. Ela fica submetida ao repetitivo ritmo da busca de novos empregos, da captura sexual e dos sonhos que logo se desfazem em desilusões. Na medida em que amadurece, quando os homens não a procuram mais tão ostensivamente, aos poucos ela mesma passa a tentar ser a caçadora. Mas é tarde demais, e o destino dela -já ensaiado por Schnitzler em uma narrativa de 1899, "O Filho"- não poderia ser outro senão o de sucumbir sob a violência de sua própria cria, seu filho bastardo Franz. A sexualidade e a família devem ser vistas como os protagonistas deste romance. Therese serve de recurso para o autor guiar os leitores por dezenas de casas burguesas. Mas Therese nunca encontra seu lar, sente-se sempre uma estranha e estrangeira no mundo. Ao adotar este ponto de vista "de baixo", de uma criada, Schnitzler apresenta o outro lado da glamourosa sociedade da decadência do império.

MÁRCIO SELIGMANN-SILVA é professor de teoria literária na Unicamp e autor, entre outros, de "O Local da Diferença" (ed. 34)

CRÔNICA DE UMA VIDA DE MULHER
Autor: Arthur Schnitzler
Tradução: Marcelo Backes
Editora: Record
Quanto: R$ 52 (400 págs.)
Avaliação: bom

TRECHO

E mais uma vez saltou da cama, arrastou-se pelo quarto ao lado até diante da porta da sra. Nebling; ouviu, bateu, tudo ficou em silêncio. Ela voltou a se recuperar. Mas o que ela estava querendo da sra. Nebling? Não precisava dela. Não precisava de ninguém. Queria era estar sozinha, continuar sozinha, conforme havia estado o tempo inteiro. [...] Não, nada de ajuda, não. Ela queria sucumbir. Era melhor que sucumbisse de uma vez por todas... Ela e a criança, e com a criança o mundo inteiro.

Extraído de "Crônica de uma Vida de Mulher", de Arthur Schnitzler



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