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LIVROS
Crítica/"Crônica de uma Vida de Mulher"
Schnitzler vê lado "recalcado" da decadência chique de Viena
Contemporâneo de Freud, autor retrata época em perspectiva feminina e "subalterna'
MÁRCIO SELIGMANN-SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Arthur Schnitzler tornou-se um autor consagrado graças às suas novelas, seus contos e suas peças
de teatro. Nelas, ele coloca em
cena o mundo decadente do
fim-de-século do Império Austro-Húngaro. Tornou-se um
lugar-comum tratá-lo como o
"Freud da literatura", e o próprio pai da psicanálise alimentou esse mito, ao escrever, em
uma carta de 1906, que sempre
ficou impressionado com a
"ampla concordância" de ambos em questões psicológicas e,
em particular, ao tratarem do
erótico.
Schnitzler publicou apenas
dois romances, um deles justamente o que acaba de ser traduzido entre nós, "Therese - Crônica de uma Vida de Mulher",
publicado originalmente em
1928, sendo, portanto, uma
obra tardia do autor, que morreu em 1931.
Peter Gay, não por acaso, no
seu projeto de escrever uma
história da classe média no século 19, utilizou a obra de
Schnitzler como seu fio condutor e batizou este estudo com o
título eloqüente "O Século de
Schnitzler".
De fato, este autor vienense
conheceu como poucos aquilo
que apresentava em sua ficção.
Ele fez de sua vida um verdadeiro exercício literário: mergulhava na sua sociedade para
melhor explorá-la e analisá-la
em suas obras. Espécie de Casanova, suas centenas de amantes -documentadas em seu impressionante e detalhado diário- são prova de que muito do
que escrevia era calcado em sua
própria vida. Ele, em vez de sublimar suas energias sexuais
para escrever, levava a vida sexual a um cume, de onde extraía sua literatura.
Vida passo a passo
A história de Therese não foge a esse padrão, mas ela difere
do resto de sua obra por se tratar de um romance. Não que este livro seja um típico romance.
Thomas Mann, entusiasmado
com esta obra, escreveu na ocasião que "este romance, como
todos bons e importantes hoje,
não é mais um romance".
De fato, Schnitzler o denominou de crônica, e este gênero
medieval marca a sua forma:
acompanhamos passo a passo a
vida de Therese, filha de um
militar (que emblematicamente morre louco em um manicômio) e de uma nobre decadente
(romancista de folhetim), que
para sobreviver se muda de
Salzburg para Viena, onde vive
como preceptora de crianças da
classe média alta. A cronologia
avança de modo quase mecânico e implacável. É como se a
realidade engolisse as subjetividades no romance. O histórico e a estória do terrível destino
de Therese se entrelaçam sob o
rigoroso -e às vezes monótono- ritmo da crônica.
"Carne de caça"
Esse ritmo é adequado à figura psicológica de Therese, que é
apresentada como uma mulher
que, apesar de não querer se
submeter à poderosa hierarquia social da sua era, sucumbe
e se torna "carne de caça" para
uma sociedade masculina na
qual a libido explode.
Ela fica submetida ao repetitivo ritmo da busca de novos
empregos, da captura sexual e
dos sonhos que logo se desfazem em desilusões. Na medida
em que amadurece, quando os
homens não a procuram mais
tão ostensivamente, aos poucos ela mesma passa a tentar
ser a caçadora. Mas é tarde demais, e o destino dela -já ensaiado por Schnitzler em uma
narrativa de 1899, "O Filho"-
não poderia ser outro senão o
de sucumbir sob a violência de
sua própria cria, seu filho bastardo Franz.
A sexualidade e a família devem ser vistas como os protagonistas deste romance. Therese serve de recurso para o autor
guiar os leitores por dezenas de
casas burguesas. Mas Therese
nunca encontra seu lar, sente-se sempre uma estranha e estrangeira no mundo. Ao adotar
este ponto de vista "de baixo",
de uma criada, Schnitzler apresenta o outro lado da glamourosa sociedade da decadência
do império.
MÁRCIO SELIGMANN-SILVA é professor de
teoria literária na Unicamp e autor, entre outros,
de "O Local da Diferença" (ed. 34)
CRÔNICA DE UMA
VIDA DE MULHER
Autor: Arthur Schnitzler
Tradução: Marcelo Backes
Editora: Record
Quanto: R$ 52 (400 págs.)
Avaliação: bom
TRECHO
E mais uma vez saltou da
cama, arrastou-se pelo quarto
ao lado até diante da porta da
sra. Nebling; ouviu, bateu,
tudo ficou em silêncio. Ela
voltou a se recuperar. Mas o
que ela estava querendo da
sra. Nebling? Não precisava
dela. Não precisava de
ninguém. Queria era estar
sozinha, continuar sozinha,
conforme havia estado o
tempo inteiro. [...] Não, nada
de ajuda, não. Ela queria
sucumbir. Era melhor que
sucumbisse de uma vez por
todas... Ela e a criança, e com a
criança o mundo inteiro.
Extraído de "Crônica de uma Vida de
Mulher", de Arthur Schnitzler
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