São Paulo, sexta-feira, 27 de outubro de 2000

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"JANELA INDISCRETA"
Cortinas são espelho do voyeur de Hitchcock

ESPECIAL PARA A FOLHA

Há, antes de tudo, um antológico "establishing shot": o pátio, o rosto suado de Jeff (James Stewart), sua perna engessada, a câmera quebrada, algumas revistas na mesa e, enfim, fotos de uma corrida de carros que traçam, na parede, sua própria narrativa. De um só golpe, Hitchcock explica toda a situação.
É o que o mestre costuma denominar de "a mais pura expressão cinematográfica". Mas o que faz de "Janela Indiscreta" uma obra-prima é o fato de Hitchcock acrescentar a essa pura expressão visual a mais certeira metáfora da "condição cinematográfica".
O crítico Jean Douchet foi o primeiro a notar: Jeff é um espectador que projeta seus desejos na tela que fica atrás das cortinas de sua janela. Daí, talvez, seu comportamento algo compulsivo. O personagem sempre deixa suas responsabilidades de lado, isto é, sua noiva, para "voyeurizar" a vida dos outros, isto é, ir ao cinema.
Jeff retoma, sobretudo, com sua perna engessada e sua zoom, as condições do espectador de cinema: imobilidade do corpo e concentração de energia no olhar. Condições que remontam à infância, à maturação precoce da organização visual e à imaturidade motriz que marcam, como lembra Jean-Louis Baudry, num texto em que denuncia o dispositivo cinematográfico como uma espécie de aparelho psíquico substitutivo, a fase do espelho.
Fase em que, de frente ao espelho, a criança inicia, segundo Lacan, a constituição imaginária de seu "eu".
E o que o voyeur de Hitchcock vê em seu espelho? Várias situações que ilustram, no pátio em frente, o tema e a impossibilidade do amor. De todas elas, apenas uma é simétrica à sua. Um casal em crise: a mulher adoentada, imobilizada, e o marido indo e vindo, tal como o fotógrafo e sua noiva. No casal em crise, Jeff projeta o crime de sua conduta, redimindo-se de sua culpa ao trocá-la, simbolicamente, com o vizinho criminoso (a velha "culpabilidade intercambiável" de Hitchcock).
Em sua análise do filme, Ismail Xavier observa que a personagem de Grace Kelly só conquista definitivamente Jeff quando entra no espaço do desejo do fotógrafo, isto é, na tela-espelho. Nesse sentido, como já apontava Truffaut numa de suas entrevistas com Hitchcock, a aliança que ela mostra de longe para o fotógrafo não é só a prova do crime do vizinho.
Depois de vislumbrar Kelly com a aliança em sua tela-espelho, Stewart só poderá terminar mesmo duplamente engessado. O casamento, portanto, apenas reforçará seu voyeurismo contumaz. Voyeurismo que é o de Hitchcock e de todos nós que amamos o cinema. Hitchcock foi o primeiro a colocar o espectador dentro do filme. De seus voyeurs descendem todos os personagens modernos, tipos que já não são actantes como outrora, mas videntes. Eles já não existem no mundo senão enquanto espectadores. Se não são crianças, guardam ao menos o espírito da infância. (TMM)
Janela Indiscreta
Rear Window

     Direção: Alfred Hitchcock
Produção: EUA, 1954
Com: James Stewart, Grace Kelly, Wendell Corey
Quando: a partir de hoje nos cines Belas Artes, Espaço Unibanco e Pátio Higienópolis



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