São Paulo, sábado, 27 de outubro de 2007

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FÁBIO DE SOUZA ANDRADE

Ramiro de perto


Escritor tomou parte no controvertido "bonde das letras" e trata com ironia protagonista de romance

CHICO MATTOSO, 28, editor da revista literária "Ácaro", faz jus à fama de "novíssimo".
Blogueiro, estreou em livro com "Cabras", obra coletiva, e com o conto "Emílio", incluído no volume "Parati para Mim", subproduto da primeira Flip -a idéia era ter, durante o festival, três escritores confinados numa pousada, traduzindo a cidade em ficção. Também tomou parte no recente e controvertido "bonde das letras", o projeto Amores Expressos que, patrocinado por uma editora, despachou por um mês 16 autores brasileiros para destinos variados pelo mundo (no seu caso, Havana), com o compromisso de escrever uma história que amarrasse amor e a cidade visitada. Escrita, viagem e deslocamento, atravessados por diários eletrônicos que abrem os bastidores da criação, a aposta nas revistas com cara própria e a duras penas sustentadas, sem descartar as encomendas do mercado editorial, Mattoso é cria do seu tempo.
"Longe de Ramiro", seu primeiro (e breve) romance, também parte de um deslocamento, agora no domínio do vizinho e do familiar. Todo-mundo-e-joão-ninguém, o protagonista é um jovem "homem sem qualidades", prova viva que, de perto, somos todos bem estranhos e parecidos. Desacostumado de si mesmo, invasor do próprio corpo, Ramiro leva ao extremo um pendor para cismar com o dia-a-dia ralo de classe média urbana, que assume ares de natureza incontornável, e decide mudar-se, sem explicações ou notícias, para um flat. Lá, entre camareiras e hóspedes, o narrador o flagra pela primeira vez, a vida prática interrompida, o velho eu abandonado.
Distante da alegoria, o eixo do romance é este presente suspenso, quando a roda dentada da rotina, cariada, deixou de funcionar e a linguagem corriqueira não mais corresponde às coisas. No espaço impessoal dos corredores do hotel, montanha mágica modesta ao seu alcance, tudo assume ares de curioso, risível ou insólito. Nada corre no automático. Uma persiana quebrada, o percurso do quarto ao restaurante, a espera por uma mesa vazia convertem-se ora em desafio lógico, ora em pesadelo desperto, ora em pretextos para fantasia e capacidade descritiva correrem soltas; em experiência, nunca.
Passa seus dias metido num roupão, ocasionalmente assaltado por lembranças esparsas (festas, amigos, infância), a um só tempo recentes e remotas, sem que a memória, a exemplo do presente, se engrosse num fluxo. Contra estes quadros sem sentido ou continuidade, em que seu lugar é sempre à margem, apenas a imagem persistente de uma mulher parece se salvar, digna de disputar sua atenção com os padrões do piso do lobby ou o espetáculo científico da movimentação dos hóspedes. Chico Mattoso encontrou em Ramiro um estranho no ninho que nos diz respeito, capaz de olhar o mundo com olhos de primeira vez, sem que haja segunda à vista, e dizê-lo com ironia. Não é pouco para um romance de estréia.


LONGE DE RAMIRO
Autor: Chico Mattoso
Editora: 34
Quanto: R$ 25 (88 págs.)
Avaliação: bom



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