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CONTARDO CALLIGARIS
Em defesa de Michael Jackson
A mídia do mundo inteiro
encheu as telas de nossos televisores com Michael Jackson
acusado de praticar atos lascivos
contra uma criança. Vimos o cantor preso, algemado e solto após
pagar uma fiança de US$ 3 milhões.
O procurador, Tom Sneddon,
declarou que interrogará as
crianças que frequentaram a casa
de Michael Jackson nos últimos
anos, ou seja, pediu mais denúncias. Psiquiatras e psicólogos
compareceram para nos explicar
que um pedófilo vive na Terra do
Nunca e faz de conta que é Peter
Pan para aproximar-se de suas
vítimas inocentes.
Tudo isso num clima quase festivo. A ponto de, na CNN, os próprios jornalistas se interrogarem:
mas o que há com Michael Jackson (e conosco), que não conseguimos relatar os fatos sem cair
na piada? Não encontraram resposta, mas tiveram a decência de
perguntar.
Faz muitos anos que rimos de
Michael Jackson.
No começo, era por sua transformação. Ele se parecia cada vez
mais com o Peter Pan de Walt
Disney, que, como se sabe, é branco. Rimos dele como rimos da
mulher que passou por não sei
quantas plásticas para ter as proporções da boneca Barbie. É o riso
nervoso que surge quando nos
lembramos de algo que nos concerne e que preferiríamos esquecer. No caso, a mulher-Barbie e
Michael Jackson são nossa caricatura, pois, em alguma medida, sofremos do mesmo mal deles: queremos sempre ser outros.
Também rimos de Michael
Jackson porque decidiu que seu
sítio seria a Terra do Nunca (onde todos ficam eternamente
crianças) e decorou sua casa como uma loja de brinquedos.
Quando ele se casou com a filha
de Elvis Presley, foi comentado
que a idade mental dos dois juntos não fazia um adulto. Quando
ele escolheu sua enfermeira como
segunda mulher (e mãe de seus filhos), ironizamos que, na idade
mental dele, só podia casar-se
com quem cuidava de seus dodóis, ou seja, com uma mãe.
Como o próprio Michael Jackson disse, ele quer recuperar uma
infância que não teve. Mas, por
exemplo, o ano de meus 51 anos
foi péssimo. Nem por isso tento recuperá-lo. A vontade de reviver
uma infância perdida só surge
numa cultura em que a felicidade
das crianças é a fantasia de todos.
Como a infância é nosso protótipo forçado de felicidade, Michael Jackson quer ser criança. E,
como vive num mundo racista,
acha melhor ser criança branca.
Engraçado? Pode ser, mas, de novo, o riso é nervoso.
Em 1993, o cantor foi acusado
de molestar um menino de 12
anos. Ele preferiu entregar uma
bolada de dinheiro a encarar o
risco de um processo. Hoje, surge
uma nova acusação análoga e
outras espreitam. Duas observações.
O procurador Sneddon sabe
que, na Califórnia, a exploração
da prostituição é um crime grave.
Houve pais e mães que, durante
dez anos, conhecendo o episódio
de 1993, mandaram seus rebentos
para a Terra do Nunca, porque
era "legal" que conhecessem o
cantor ou (mais provável) na esperança de cobrar, mais tarde, alguns milhões como preço de seu
silêncio. Ser cafetão ou cafetina
de suas próprias crianças não dá
cadeia?
Em boa clínica, é pedofílica
uma fantasia (realizada ou não)
na qual um adulto envolve uma
criança em práticas sexuais que a
criança não entende. É crucial,
nessa fantasia, a diferença de saberes: a criança pratica ou sofre
atos cuja significação sexual lhe
escapa. É dessa desproporção que
o pedófilo goza. Pedófilo exemplar é aquele padre do Estado de
Massachusetts que mandava um
menino satisfazê-lo oralmente,
explicando-lhe que essa era a santa comunhão.
Não sou o psicoterapeuta de
Michael Jackson. Mas os psiquiatras e psicólogos televisivos também não são. E tudo indica que,
nas festinhas de dormir todos juntos na Terra do Nunca, não se trata de pedofilia. Deviam acontecer
coisas impróprias: toque aqui,
que toco lá, mostre lá, que mostro
aqui, iiiii!, vamos dar beijo de língua. Ou seja, entre os lençóis de
Jackson, devia acontecer o que
pode acontecer quando crianças
se amontoam numa cama sem
que haja adultos por perto.
Pelo que sabemos, Michael
Jackson não é um pedófilo, mas
uma criança que eventualmente
brinca com o faz-pipi (o seu e o
dos amiguinhos).
Obviamente, essa distinção não
tem valor (nem deve ter) aos
olhos da lei: o cantor tem 45 anos,
e, portanto, suas brincadeiras, se
confirmadas, constituem um
abuso. Mas, quanto ao diagnóstico clínico, seria bom que os colegas televisivos se contivessem. A
não ser que eles, sabendo que o
povo gosta de assistir à queda de
um astro, queiram liderar um linchamento.
Voltemos ao riso. Por que, de
novo, desta vez, Michael Jackson
suscita a hilaridade nervosa? É
que ele nos lembra algo que, apesar de Freud, muitos ainda querem esquecer: existe uma sexualidade infantil. Na Terra do Nunca, brinca-se também com o faz-pipi. Que horror.
Alguém perguntará: por que defender um "babaca" como Michael Jackson? De fato, sua figura,
por trágica que seja, me inspira
pouca simpatia, e não sou fã de
sua música. Mas, no meio de uma
onda repressora e hipocritamente
moralista que se expande pelos
EUA afora, ao escutar a raiva fria
do procurador Sneddon, lembrei-me de um breve texto, que aprendi do meu pai e que é de Martin
Niemoller, um pastor que sobreviveu aos campos nazistas: "Primeiro, eles vieram pegar os comunistas, mas eu não era comunista
e não falei nada. Depois, vieram
pegar os socialistas e os sindicalistas, mas eu não era nenhum dos
dois e não falei nada. Logo vieram pegar os judeus, mas eu não
sou judeu e não falei nada. E,
quando vieram me pegar, não sobrava mais ninguém que pudesse
falar por mim".
ccalligari@uol.com.br
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