São Paulo, sábado, 27 de novembro de 2004

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LIVROS

LITERATURA DE VIAGEM

"O Grande Bazar Ferroviário" narra trajeto feito em 75

Clássico de Paul Theroux desembarca após 30 anos

DA REPORTAGEM LOCAL

Existe uma estrada de ferro que corta pela metade a literatura de viagens contemporânea. Essa estrada de ferro tem o imponente nome "O Grande Bazar Ferroviário" e foi "inaugurada" em 1975.
O "maquinista" se chama Paul Theroux e, com este livro, no qual narra uma viagem de Londres a Tóquio (veja trajetória acima), ida e volta, sempre que possível por trem, se consagrou como o maior nome atual das letras viajantes.
A obra central deste americano de 64 anos, viajante de qualidade também na estrada da ficção, está saindo pela primeira vez no Brasil, lançada pela editora Objetiva.
Em entrevista à Folha, Theroux mostrou polaróide pouco favorável do Brasil, criticou os Estados Unidos, a internet e até o ato de viajar e fez um balanço de andanças feitas e das que pretende fazer. (CASSIANO ELEK MACHADO)

Folha - Quando o sr. estava no Japão, quase terminando sua longa viagem, um sujeito chamado Chester lhe perguntou qual a graça de um livro de viagens se todos nós viajamos. O sr. , que depois viria a se especializar nesse gênero, ficou na época desconcertado com a pergunta. Se pudesse encontrar Chester hoje como o responderia?
Paul Theroux -
Eu diria a ele, como freqüentemente digo a mim mesmo, que o ato de viajar é egoísta, auto-indulgente e normalmente sem propósito, mas que às vezes tem o efeito de nos fazer lembrar quem somos, como é o mundo e por que estamos nele.
Escrever sobre uma viagem força o viajante a pensar profundamente sobre seu deslocamento e a buscar conclusões inteligentes. Para mim é fundamental. Se não o faço, mal lembro onde estive.

Folha - Quando o sr. fez a viagem descrita no livro, em 1975, era dezenas de vezes mais difícil conseguir informações sobre lugares distantes. O sr. acha que um livro como "O Grande Bazar" faria sentido nos tempos da internet?
Theroux -
Acredito que o único jeito de ter informações de verdade sobre um lugar é viajando até ele. A internet é um saco de mentiras, de meias-verdades, de enganos e fraudes. Tente conseguir alguma informação sobre Angola na internet. Não há quase nada. A experiência in loco é fundamental. Em última instância, você verá que Angola não existe no papel. Só existe para o viajante audaz.

Folha - Passados 30 anos de sua viagem, qual a melhor e a pior lembrança que o sr. guarda dela?
Theroux -
Muitos acham que o pior foi o Afeganistão. Mas a pior parte da viagem mesmo foi ter ficado longe por tanto tempo da minha mulher e de meus dois filhos, então pequenos. As melhores partes foram a descoberta de que o Vietnã era tão lindo e a sensação de um trem a vapor me levando Sibéria adentro durante uma tempestade de neve.

Folha - Quantos países o sr. conheceu durante sua longa carreira de "escritor-viajante"?
Theroux -
Não sei, nunca contei. Casanova costumava ter sempre em mente o número de mulheres que ele seduziu, o que me dá sinais de que ele nunca gostou verdadeiramente das mulheres.

Folha - Quais países estão na lista dos que o sr. gostaria de conhecer?
Theroux -
São muitos, incluindo toda a Escandinávia, o Cambodja e o Brasil, que gostaria de conhecer melhor. Também gostaria de conhecer partes dos EUA, como Dakota do Norte e Arkansas.

Folha - Eu já li uma declaração do sr. de que "as favelas brasileiras são piores do que qualquer coisa no mundo". É essa a principal lembrança do sr. sobre o Brasil?
Theroux -
Eu fiz uma tentativa de viajar pelo Brasil em 1997, mas depois de seis semanas tive a convicção de que não saber a língua daí atrapalharia muito o meu entendimento sobre o país. Minhas impressões foram passageiras, mas não as melhores. Encontrei aí muitos exemplos de catástrofes ambientais, de indiferença política com uma população já impaciente, encontrei cidades dignas de pesadelos. São Paulo me pareceu um exemplo de desenvolvimento insustentável. Mas o que sei eu? Sou um turista ignorante.

Folha - O sr. já disse que literatura de viagem não é escrever coisas à "Está tudo bem por aqui. Queria que você estivesse comigo", que viajar é "miséria e atrasos". Como o sr. faz quando viaja e vive o clima "Está tudo bem por aqui. Queria que você estivesse comigo"?
Theroux -
Quando tudo está indo bem em uma viagem, é impossível seguir escrevendo. Mas isso vale também para a ficção. Ela também trata inevitavelmente de visões deturpadas de mundo.

Folha - Para o sr., quão próxima a sua escrita chega da antropologia?
Theroux -
Provavelmente estou mesmo próximo da antropologia embora eu seja especialmente anticientífico e ache a antropologia bem maçante. É claro que algumas obras antropológicas, como "Tristes Trópicos", de Lévi-Strauss, são lindas. Este é, aliás, um grande estímulo que tenho para conhecer o Brasil para valer.

Folha - No seu livro o sr. descreve muitos lugares exóticos que visitou. Para muitos, um dos lugares mais exóticos do mundo hoje é os Estados Unidos. O sr. consegue imaginar um livro de viagens em estilo Theroux sobre os EUA?
Theroux -
Os Estados Unidos podem parecer exóticos para muitos. Para mim é uma casa, e nossas casas nunca são exóticas. Gostaria muito de escrever um livro sobre os EUA, mas ainda não encontrei um jeito de fazê-lo.

Folha - Como o sr. pensa que as coisas vão mudar para um viajante com a promoção de Condoleezza Rice e a política externa de Bush?
Theroux -
Tudo vai ficar pior. A economia, a Guerra do Iraque, a moral americana, a segurança. Uma vitória de Kerry não teria feito as coisas muito diferentes, pois ele também havia decidido aumentar o número de soldados fora do país. Não existem soluções militares para o atual conflito, só as políticas e diplomáticas.

Folha - Seu próximo romance, o ainda inédito "Blinding Light", promete ser a história de um escritor que, depois do sucesso com um livro de viagens, tem uma aguda crise criativa. Seu primeiro grande sucesso, o livro de viagens "Grande Bazar", teve efeito parecido?
Theroux -
Não. O fato de ter um livro de sucesso me trouxe liberdade e felicidade, alimentou minha família e me permitiu seguir adiante, fazendo outros 30 livros.


O GRANDE BAZAR FERROVIÁRIO. Autor: Paul Theroux. Editora: Objetiva. Tradução: Marisa Motta e Fernanda Abreu. Quanto: R$ 59,90 (453 págs.)

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