São Paulo, sábado, 27 de novembro de 2004

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TEATRO

"A Second Hand Memory" aborda duas gerações de fracassados nos anos 50

Woody Allen imerge em peça sobre desesperança

CHARLES ISHERWOOD
DO "THE NEW YORK TIMES"

A tragédia é provavelmente algo que ficará para sempre fora do alcance de Woody Allen, por mais que ele, quando se sinta em clima "ingmar bergmanesco", possa tentar chegar até ela. A infelicidade, porém, é algo que ele domina sem dificuldade em sua nova peça, a implacavelmente deprimente "A Second Hand Memory", que estreou na última segunda na Atlantic Theater Company, em produção dirigida por Allen.
Recoberto de tristeza, esse drama sobre duas gerações de sonhadores fracassados no Brooklyn, nos anos 50, é narrado por Alma Wolfe (Elizabeth Marvel), beatnik que vive às margens de seu mundo em meio a uma névoa de fumaça de cigarro, com um copo de bebida dourada forte na mão.
Alma é a única que conseguiu escapar do ambiente envenenado da fazenda de sua família, para a qual ela serve de guia turística emocional. Mas Alma vive uma ressaca permanente, perdendo-se numa série de encontros com homens em cidades européias, sonhando tornar-se escritora e, ao mesmo tempo, à procura do amor que nunca recebeu de seu pai, que queria um filho homem.
Esse é apenas um dos clichês deprimentes que se juntam como poeira nos cantos desta peça decepcionante, que, de maneira desajeitada e confusa, se desloca entre diferentes momentos temporais ao apresentar a saga infeliz da família Wolfe (a cronologia dispersa e as ambientações diversas, representadas no palco de maneira incômoda, sugerem que o texto pode ter surgido primeiramente como roteiro de filme).
A peça começa com Eddie (Nicky Katt), o filho que Lou Wolfe (Dominic Chianese) finalmente teve, ajudando a recuperar as finanças da joalheria da família, da qual nunca gostou. Eddie está casado há pouco e sua mulher espera um filho, mas seu cenho franzido assinala sua angústia interior.
As raízes dessa angústia vêm à tona quando a peça descreve uma volta no tempo, revelando a crise que fez Eddie voltar de Hollywood para casa: o fato de Lou descobrir que os contadores da joalheria faziam barbaridades e colocaram a empresa no vermelho.
Eddie foi chamado para casa, tendo que abandonar seu novo emprego com seu tio Phil Wellman (Michael McKean), um agente de Hollywood que lhe tinha dado uma chance, atendendo ao pedido de Fay (Beth Fowler), mulher de Lou e irmã de Phil.
Alguns outros instantâneos do passado revelam que a volta de Eddie para casa não foi voluntária. Ele também resolvera retornar para afastar-se do caso que tinha com a secretária do tio Phil, Diane (Erica Leerhsen), que buscara consolo em seus braços após um caso adúltero com seu chefe. Mas, quando Phil resolve separar-se de sua mulher para ficar com Diane, esta manda Eddie embora.
Agora Eddie se vê ligado a contragosto à mulher com quem se casou para esquecer o romance com Diane e vislumbra a perspectiva de uma vida cansativa ao lado de seu pai dominador e frágil fisicamente. Uma chance de fazer um negócio imobiliário na Flórida lhe oferece um meio de escapar do futuro sufocante.
As prisões emocionais, angústia e os sentimentos de culpa já viraram temas obsessivos no trabalho de Allen e são quase a base toda de "A Second Hand Memory". ""Não mando em meus sentimentos", diz Eddie, desculpando-se pelo fato de continuar a amar Diane. E ele tem bons motivos para fugir de sua vida de casado.
Cada mudança no tempo vai trazendo à tona mais um episódio de angústia familiar, mais uma causa oculta de amargura. Também Fay sonhava com Hollywood, mas desistiu para casar sem amor. Lou foi chantageado por Phil, obrigado a pôr fim a um caso extraconjugal e nunca perdoou seu cunhado por isso.
Neste clima de desesperança, o dilema de Eddie -ele deve continuar com a mulher ou deve deixá-la?- gera pouco suspense. Alma resume a moral dominante da história ainda no início da peça: "Todo o mundo tem boas intenções, mas, por alguma razão, a vida não dá certo". "Porque o ser humano é fraco", responde Fay.
A ação comprova a validade desses pronunciamentos sombrios e, embora os atores criem algum calor humano, é difícil escapar da sensação de que os personagens não estão fazendo mais do que cumprir suas sentenças de prisão diante de nossos olhos.
Marvel é uma presença atraente, embora seu papel seja um recurso literário desajeitado. Quando necessário, Alma suaviza as transições ou se insere no drama para convocar um dos personagens para um colóquio revelador.
McKean anima o espetáculo bastante no papel de Phil, e Fow- ler tem a performance mais simpática e realizada no papel de Fay.
Os personagens mais jovens não são bem representados. A compaixão do espectador pelo dilema de Eddie é limitada em razão da atuação pouco nuançada de Katt. E Leerhsen, no papel de Diane, se mostra rígida demais.
"A vida é repleta de caminhos não-trilhados", diz Eddie, mas difícil é imaginar que qualquer caminho empreendido pelos personagens poderia conduzir a destinos mais benévolos. Sua visão da vida como uma série de sonhos vazios e becos sem saída emocionais parece ter sido gravada em pedra em "A Second Hand". A perspectiva desiludida da peça é hermética demais para admitir a possibilidade de contentamento, muito menos de realização.


Tradução de Clara Allain

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