São Paulo, domingo, 27 de novembro de 2005

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"IRACEMA"

Extras comentam slogans e o choque entre ficção e documentário

Pérola dos anos 70 se adapta aos "riscos do real" do Brasil

TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

A julgar pelos primeiros lançamentos, o mercado nacional de DVDs será submetido, com a estréia da Videofilmes, a um verdadeiro choque de realidade. Documentários clássicos de todas as escolas são a especialidade do cardápio. A entrada: uma chef-d'oeuvre que revolucionou, a um só tempo, a ficção e o documentarismo brasileiros, "Iracema - Uma Transa Amazônica" (75).
O título, obrigatório em qualquer antologia do cinema nacional, é dessas pérolas dos anos 70 que levaram até o fim (a exemplo de "A Queda", de Ruy Guerra) a fraternidade entre documentário e ficção tão cara ao cinema moderno. Fraternidade ambígua, expressa no encontro entre o caminhoneiro Tião Brasil Grande (Paulo César Pereio) e a Iracema de Edna de Cássia, jovem cabocla paraense que descobre o cinema como quem descobre a vida.
No percurso de Iracema, Jorge Bodanzky e Orlando Senna alegorizam a própria história da floresta amazônica. Ao final, a inocência perdida dessa figura de jovem prostituta precocemente carcomida não é mais que o reflexo de nossas próprias desilusões em face do projeto de modernização à brasileira. Surpreendida na fronteira, a idéia desenvolvimentista nacional revela sua outra face: por trás do modelo propagandístico vazio, o fundo das queimadas. Imagem que correu o mundo: feito para a TV alemã, o filme se tornou uma referência nos debates sobre meio ambiente na Europa.
Troque-se a Transamazônica, projeto-símbolo do "Brasil grande" da ditadura militar, pela transposição do rio São Francisco e chegue-se à conclusão de João Moreira Salles sobre seu "Notícias de uma Guerra Particular": "A atualidade não é uma virtude do filme, mas um defeito da realidade". A virtude é essa que o criador da Videofilmes tenta inutilmente destrinchar com Bodanzky na sessão comentada dos extras: a imbricação documentário/ficção.
Realizado por uma equipe mínima (que cabia em uma Kombi), rodado ao improviso na estrada, adaptando-se às contingências e situações, sem cerimônias nem repetições, "Iracema" é obra realizada sob conta e "risco do real", desses filmes em que os atores estão sempre se inserindo num contexto maior para dele extrair a vida e a verdade dos personagens.
Dos dribles que Pereio já deu na censura, este é o mais belo. Caricatura do otimismo desenvolvimentista, é um agente provocador, um catalisador de situações que renova o documentário pela ficção (ao refazer o "método da entrevista", como lembra Ismail Xavier nos extras) e a ficção pelo documentário (aproximando da realidade a verve alegorizante do cinema brasileiro dos 70). Seus encontros, nos quais seu discurso chapa-branca é sempre tomado ao pé da letra, em plena contradição com a realidade, são a evidência da pompa vazia dos slogans oficiais -os de ontem, os de hoje.


Iracema - Uma Transa Amazônica
    
Direção:
Jorge Bodanzky e Orlando Senna
Distribuidora: Videofilmes; R$ 45



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