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"IRACEMA"
Extras comentam slogans e o choque entre ficção e documentário
Pérola dos anos 70 se adapta aos "riscos do real" do Brasil
TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA
A julgar pelos primeiros
lançamentos, o mercado nacional de DVDs será submetido,
com a estréia da Videofilmes, a
um verdadeiro choque de realidade. Documentários clássicos de
todas as escolas são a especialidade do cardápio. A entrada: uma
chef-d'oeuvre que revolucionou,
a um só tempo, a ficção e o documentarismo brasileiros, "Iracema
- Uma Transa Amazônica" (75).
O título, obrigatório em qualquer antologia do cinema nacional, é dessas pérolas dos anos 70
que levaram até o fim (a exemplo
de "A Queda", de Ruy Guerra) a
fraternidade entre documentário
e ficção tão cara ao cinema moderno. Fraternidade ambígua, expressa no encontro entre o caminhoneiro Tião Brasil Grande
(Paulo César Pereio) e a Iracema
de Edna de Cássia, jovem cabocla
paraense que descobre o cinema
como quem descobre a vida.
No percurso de Iracema, Jorge
Bodanzky e Orlando Senna alegorizam a própria história da floresta amazônica. Ao final, a inocência perdida dessa figura de jovem
prostituta precocemente carcomida não é mais que o reflexo de
nossas próprias desilusões em face do projeto de modernização à
brasileira. Surpreendida na fronteira, a idéia desenvolvimentista
nacional revela sua outra face: por
trás do modelo propagandístico
vazio, o fundo das queimadas.
Imagem que correu o mundo: feito para a TV alemã, o filme se tornou uma referência nos debates
sobre meio ambiente na Europa.
Troque-se a Transamazônica,
projeto-símbolo do "Brasil grande" da ditadura militar, pela
transposição do rio São Francisco
e chegue-se à conclusão de João
Moreira Salles sobre seu "Notícias
de uma Guerra Particular": "A
atualidade não é uma virtude do
filme, mas um defeito da realidade". A virtude é essa que o criador
da Videofilmes tenta inutilmente
destrinchar com Bodanzky na
sessão comentada dos extras: a
imbricação documentário/ficção.
Realizado por uma equipe mínima (que cabia em uma Kombi),
rodado ao improviso na estrada,
adaptando-se às contingências e
situações, sem cerimônias nem
repetições, "Iracema" é obra realizada sob conta e "risco do real",
desses filmes em que os atores estão sempre se inserindo num contexto maior para dele extrair a vida e a verdade dos personagens.
Dos dribles que Pereio já deu na
censura, este é o mais belo. Caricatura do otimismo desenvolvimentista, é um agente provocador, um catalisador de situações
que renova o documentário pela
ficção (ao refazer o "método da
entrevista", como lembra Ismail
Xavier nos extras) e a ficção pelo
documentário (aproximando da
realidade a verve alegorizante do
cinema brasileiro dos 70). Seus
encontros, nos quais seu discurso
chapa-branca é sempre tomado
ao pé da letra, em plena contradição com a realidade, são a evidência da pompa vazia dos slogans
oficiais -os de ontem, os de hoje.
Iracema - Uma Transa
Amazônica
Direção: Jorge Bodanzky e Orlando
Senna
Distribuidora: Videofilmes; R$ 45
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