São Paulo, segunda-feira, 27 de novembro de 2006

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GUILHERME WISNIK

Ponto de fuga



O divórcio entre economia e nação produziu um dramático vácuo de perspectivas para grande parcela dos cidadãos
"SEGUNDO O dicionário, perspectiva é a vista de longe até onde os olhos alcançam. É sentimento de esperança e expectativa. É contar, ter como provável ou conseguir. Perspectiva é ter um projeto e acreditar nele. É desenhar um objetivo e fazer de tudo para chegar lá. Perspectiva pode ser uma representação tridimensional, linhas paralelas que vão em direção a um ponto de fuga, e também podem ser nossos sonhos e vontades.
O Parque Cidade Jardim foi concebido em cima dessas perspectivas, concretas e abstratas. Muito mais do que perspectivas arquitetônicas, ele traz perspectivas de vida que a cidade nos roubou, como caminhar depois do jantar, andar com segurança ou fazer compras a pé. São desenhos de projetos de vida. São esboços de uma cidade mais habitável, mais humana e mais saudável".
Diferentemente da maioria das propagandas de lançamento imobiliário, feitas de frases diretas e hiperbólicas, esse texto de apresentação do condomínio Parque Cidade Jardim convida a uma divagação "desinteressada". Pérola do gênero, parece uma mistura de auto-ajuda com manifesto de classe. Se num primeiro momento lança mão de táticas de encorajamento, tratando o leitor como alguém que deva ser estimulado para encontrar-se consigo próprio, em seguida o inclui entre seus pares ("nós"), em referência ao que a cidade "nos roubou".
É nessa cumplicidade de classe que reside a mensagem central. Como num manifesto informal, o grupo que se pronuncia deseja substituir a cidade usurpada, corrompida, com "esboços de uma cidade mais habitável, mais humana". Leia-se, com o próprio condomínio murado e auto-suficiente, literalmente um ponto de fuga situado mais além (ou mais aquém) da cidade real. Vejam: não se trata de um ponto distante, como Alphaville ou Granja Viana. É um ponto mirífico, infinito.
O mais vultoso empreendimento de luxo de São Paulo contará com nove edifícios residenciais, quatro torres empresariais, um shopping com grifes famosas e um spa, que terá uma programação exclusiva para as crianças "enquanto os pais fazem seu tratamento de beleza e ginástica". Outra vantagem para os moradores é poder "ir ao shopping a pé e não ter que carregar as sacolas".
Evidentemente não será o caso de exigirmos da elite qualquer filantropia social, a não ser como resquício de bondade cristã. Quem poderá discordar de Eliana Tranchesi, dona da Daslu, ao afirmar que a responsabilidade sobre a favela vizinha à loja é do governo, e não dela? Igualmente, quem poderá refutar o fato de que o mercado de luxo é o que mais cresce em São Paulo e, portanto, precisa ser atendido à altura de suas aspirações?
Ocorre que o cinismo revanchista dessas aspirações revela um total esfacelamento social, reflexo do cancelamento da ilusão desenvolvimentista de integração nacional. Fica evidente que o atual divórcio entre economia e nação produziu um dramático vácuo de "perspectivas" para grande parcela dos cidadãos. Enquanto para outros indica um ponto cego de escape que só olhos iluminados são capazes de enxergar.


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