São Paulo, segunda-feira, 27 de novembro de 2006

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NELSON ASCHER

As faltas da educação


Nem o melhor professor tornará cultas crianças cuja cultura de base lhes estreite os cérebros


HORÁCIO, TALVEZ o maior poeta lírico ocidental, conclui o terceiro livro de suas "Canções" afirmando que havia erguido um monumento mais perene que o bronze, mais alto que as pirâmides reais. Embora se referisse, com justa arrogância, à própria obra, assegurando-nos que seu renome perduraria tanto quanto, com seus rituais e costumes, a civilização romana, ele, lido, apreciado e imitado 15 séculos após o fim do mundo em que vivera, revelou-se prudente e até modesto.
Nem por isso a maioria deixa de associar realidade, realizações e o realismo a obras concretas e a construções visíveis a olho nu. Assim, um viaduto inacabado ou congestionado continua a render mais votos do que uma linha de metrô pronta para ser usada. Aquele, afinal, salta muito mais aos olhos. E algo semelhante, só que pior, vale, no Brasil, para a educação.
Se o conceito de educação é problemático em si, com os poderosos do momento e seus ideólogos a apontá-la como cura de todos os males, uma atividade que, milagrosa, transforma, de antemão, predadores potenciais em bons cidadãos (e não, como de fato acontece, em predadores mais eficazes), ela, em nosso país, se resume não raro, se bem que com menos perenidade do que lhes atribuiria Horácio, a monumentos entre régios e funerários. Aqui, educar é abrir estradas -desculpem: citação errada-, quero dizer, é construir escolas. A educação, ou melhor, a verba a ela destinada se evapora em concreto armado.
Aulas ótimas podem ser dadas num galpão ou garagem, enquanto paredes de mármore e poltronas aveludadas, bem como toda a crescente parafernália tecnológica, não melhoram em nada o nível de uma péssima. A conclusão óbvia à qual as pessoas racionais chegam é, portanto, que sua qualidade depende sobretudo da dos professores. Invista-se, pois, na formação destes, aumente-se seu salário. Até aqui, tudo bem, nada contra.
Só que as boas intenções acima não bastam. Pais e, principalmente, filhos sabem de um elemento cuja importância eclipsa a dos demais. Quem, em última instância, determina a qualidade do ensino não é a burocracia, o currículo nem os professores, mas os alunos. Nem o melhor professor tornará culto e apetente um grupo de crianças ou jovens cuja cultura de base, trazida em parte de casa e, em parte, desenvolvida nos contactos destes quando longe dos adultos, destine-se a lhes estreitar os cérebros. Com sorte, ele salvará alguma alma individual.
A má notícia é que os mestres conseguem, sim, com a ajuda e apoio do sistema educacional, converter em autômatos doutrinados e doutrinadores alunos que, convivendo antes de encontrá-los com intelectos diferentes, haviam começado a absorver informações, idéias e hábitos capazes de, formando uma cultura à parte, propiciar-lhes uma inteligência futura e um futuro inteligente.
Pais razoáveis procuram para os filhos escolas onde os colegas se estimulem mutuamente e onde professores e diretores lhes cerceiem o mínimo possível a curiosidade natural, a fome inata de informação. Caso eles se contentem em não desinformar os alunos, já está muito bom.
O caso, porém, raramente é este. A ausência de recompensas financeiras e certa concepção do ensino se combinam para, quase sempre, colocar alunos talentosos nas mãos ou de gente desinteressada em ajudá-los a entender a regra de três, ou de gente interessada em "educá-los", ou seja, reprogramar sua cultura de base e visão de mundo.
Os defeitos da educação em geral se acentuam nos cursos superiores, em especial nas humanidades, que é para onde se encaminha o grosso dos que não tiveram acesso a um ensino menos ruim. E tal situação se ilustra de forma simples. Fala-se há tanto tempo no conflito de gerações que este chega a parecer uma característica eterna da natureza humana. Não é. Os jovens que mais "contestam" seus pais são precisamente aqueles que mais ovinamente seguem os mestres, principalmente os demagogos que tratam as classes como campos de re-educação e as aulas como comícios.
O choque de gerações decorre cada vez mais de mestres que disputam com os pais a lealdade dos filhos. E o que sucede em escala discreta nesta escola ou naquela faculdade se repete, de maneira ampliada, em sociedades inteiras. O exemplo acabado desse confisco se encontra na Europa social-democrata, onde até as maneiras de mesa são ensinadas pela escola. Não por acaso, é ali que o nexo entre a demissão dos pais e a natalidade declinante se evidencia mais claramente.


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