São Paulo, terça-feira, 27 de dezembro de 2005

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MUNDO POP

Cantor fala sobre a conflituosa relação com os pais, seu namorado brasileiro e a amizade com a princesa Diana

Quarentão, George Michael expõe face oculta

JOHANN HARI
DO "INDEPENDENT"

O Club Tropicana está fechado, e suas janelas, enferrujadas. Nos anos 80, George Michael captou o momento e o espírito de uma década hedonista quando cantou sobre um clube onde "os drinques são de graça / Tem diversão e sol para todo mundo". Hoje, porém, o vocalista e símbolo do Wham! (shorts de seda, pele morena, dentes brilhantes) está morto, enterrado debaixo das ruínas do lugar que tanto freqüentou.
Estou sentado com um George Michael melancólico, de 40 e tantos anos, para conversar sobre um documentário autorizado que foi lançado sobre ele, "A Different Story". É difícil enxergar aquele rapaz do passado no homem de hoje. Ele enxuga os olhos e diz: "Pela primeira vez em muito tempo, não sinto medo do futuro".
A história começa há 42 anos em Edgware, um dos lugares mais médios da Inglaterra da classe média. Georgios Kyriacos Panayiotou nasceu de pais cipriotas conservadores que passaram de campos de refugiados nos quais seus sete filhos se espremiam num só quarto para a situação de proprietários de um restaurante num subúrbio inglês. Em sua batalha para deixar a pobreza, a família morava no andar de cima de uma lavanderia e trabalhava incessantemente. "O trabalho era sua religião", conta. Na memória sobre os pais, estes "viviam sempre exaustos. Trabalhavam sem parar para nos fazer chegar até onde queriam que chegássemos, mas isso os fazia ser autoritários".
Sua mãe trabalhava 24 horas por dia para criar dois filhos e conciliar três empregos. Mas foi seu pai quem se tornou alvo da angústia existencial adolescente de Michael. Para Jack Panos, o sonho de seu filho de virar cantor e compositor era uma ilusão absurda, indulgência decadente de um garoto nascido no Reino Unido e que nunca tivera que trabalhar duro. Além disso, dizia, o garoto não sabe cantar. Não tem talento.
"Mas sabe de uma coisa? Muitas pessoas que tiveram uma infância desse tipo acabam se beneficiando disso", diz. "O fato de ter meu pai como adversário me deu uma ferramenta poderosa com a qual trabalhar. Subconscientemente, eu lutei contra ele até o ponto de me tornar um dos músicos de maior sucesso no mundo."
A luta com seu pai o levou até Nova York, um álbum de platina e um dueto com Aretha Franklin? "Exatamente. De certa forma, é uma boa coincidência possuir habilidade musical e, ao mesmo tempo, falta de autoconfiança. É uma espécie de deficiência que leva você a tentar avançar sem parar, como um louco."
Com 21 anos, George Michael, com o Wham!, já tinha alcançado um grau de riqueza que ultrapassava de longe as fantasias mais exageradas de um cipriota dono de restaurante. Com seu melhor amigo de infância, Andrew Ridgeley, Michael ingressou num período do qual ele hoje se recorda como sendo repleto de garotas enlouquecidas, poses exageradas e dentes inimaginavelmente brancos. Mas foi no calor do Wham! que se moldou um George Michael fictício, aquele personagem exibido do qual sentimos saudade. Certa vez ele disse: "Criei um homem -na imagem de um grande amigo- que o mundo podia amar se assim quisesse, alguém que seria capaz de realizar meus sonhos e fazer de mim um astro. Eu o chamei George Michael e, durante dez anos, ele fez tudo o que lhe mandei fazer. Ele era muito bom nesse trabalho -talvez bom até demais".
No entanto, os vínculos humanos e avessos ao controle existentes entre Georgios Kyriacos Panayiotou e George Michael se recusavam a desaparecer. Pouco a pouco Georgios se dava conta de que por trás daquele holograma heterossexual viril se ocultava um homem gay e profundamente confuso. "A depressão em que mergulhei quando o Wham! chegava ao fim aconteceu porque eu estava começando a entender que não era bissexual, e sim gay."
Uma noite, durante um concerto no Brasil, ele viu "um sujeito realmente lindo" no público. "Ele estava distraindo minha atenção a tal ponto que cheguei a evitar ir para aquela ponta do palco." Mas, depois do show, o sujeito, o estilista brasileiro Anselmo Feleppa, foi para o camarim de Michael -e transformou sua vida.
"É muito difícil sentir orgulho de sua sexualidade quando ela nunca lhe trouxe alegria, mas, quando você encontra uma pessoa que realmente ama... não é tão difícil assim", diz. "Anselmo rompeu minhas barreiras vitorianas e me mostrou como viver realmente, como curtir a vida." Foi seu primeiro relacionamento sexual amoroso com um homem: "Eu já transava por aí, mas tinha tão pouca experiência com homens que minha vida sexual era absurdamente inadequada para mim -até conhecer Anselmo".
Mas, seis meses depois de iniciada a relação dos dois, Anselmo descobriu que seu sangue estava contaminado pelo HIV. A dor amarga que o dominou levou Michael a fazer uma das melhores performances de sua carreira, quando ele fez o concerto em homenagem a Freddie Mercury ao mesmo tempo em que Anselmo começava a morrer. "Dá para imaginar uma solidão maior do que aquela? Tente imaginar que você lutou contra sua própria sexualidade a ponto de ter perdido a metade da sua vida dos 20 aos 30 anos. Finalmente você encontrou o verdadeiro amor e, seis meses mais tarde, ele é devastado. Em 1991, aquela era uma notícia apavorante. Pensei que eu também poderia ter a doença. Não podia falar disso com minha família porque não sabia como -eles não sabiam que eu era gay."
Um dia depois de Anselmo morrer de hemorragia cerebral, Michael, abalado, finalmente contou a seus pais que era gay.
A vida de Michael sempre tinha sido pontilhada pela depressão, mas foi apenas naquele momento, no início dos anos 90, que ele mergulhou "num buraco negro e muito fundo". Cometeu o erro clássico do depressivo ao tentar se aquecer com a ajuda de maconha e ecstasy. No meio disso, Michael divisou uma luz inesperada: Diana Spencer, a ex-futura rainha da Inglaterra. "Nós nos entendemos de uma maneira um pouco impalpável, que provavelmente tinha mais a ver com a maneira como tínhamos sido criados."
Não foi apenas uma amizade platônica. "Houve certas coisas que deixaram claro que ela sentia uma atração grande por mim." Quer dizer que Diana quis ter um caso com ele? Michael sorri. Passou pela cabeça dele dormir com ela? "Sabia que teria sido desastroso. Sinto-me culpado porque ela realmente gostava de mim como pessoa, e eu tendia a evitar ligar para ela porque pensava que ela devia ter tantas pessoas que a procuravam por todas as razões erradas. Presumia que seria intromissão ligar, quando, na verdade, sabia que ela estava sozinha e adoraria ouvir uma voz de amigo."
Em 1998, Michael assumiu um risco ainda maior: entrou num banheiro público em Los Angeles e tentou transar com um policial à paisana, num acontecimento que fez manchetes. "Não acho que exista algo de inerentemente disfuncional em fazer sexo casual entre gays num banheiro público -mas fazer isso como George Michael?" comenta. "Até o momento de minha prisão, eu era totalmente ingênuo em relação ao grau de homofobia que existe por aí. Quando olho para trás, acho que não há dúvida de que minha carreira teria sido realmente prejudicada se eu tivesse assumido a homossexualidade antes."
Michael acredita que está finalmente emergindo de sua década de depressão. Está até começando a aceitar que George Michael, o ídolo pop fanfarrão, seja parte dele, sim. Quando falamos sobre o presente, ele se reclina para trás, seus ombros se distendem. Michael vai se casar com seu parceiro, Kenny Goss, um vendedor de roupas esportivas, no Ano Novo.
Georgios Kyriacos Panayiotou se despede com um abraço, e eu saio de seu escritório para as ruas de Londres, num clima de inverno. O Club Tropicana parece estar muito, muito distante.


Tradução de Clara Allain

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