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CONTARDO CALLIGARIS
O saber dos poucos e o dos muitos
Na era do darwinismo digital das idéias, o jeito de sobreviver é fazer barulho, ocupar espaço
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NAS ÚLTIMAS semanas, revisei
manuscritos em inglês e em
português. Em português,
sou enganado pelo meu passado
francófono. Em inglês, meu ouvido
está enferrujado.
Nos dicionários, a gente nunca encontra exemplos que confirmem
exatamente a legitimidade da expressão que queremos usar. Ou,
pior, a gente confia em exemplos antigos e acaba usando expressões esquisitas porque Machado já as usou.
Fazer o quê? Posso recorrer à internet. Quero saber se uma regência
nominal é "boa"? É só digitá-la entre
aspas na barra do Google e repetir a
experiência com regências alternativas. Adotarei a mais usada.
É claro, dessa forma, a freqüência
do uso sempre valerá mais que a regra. Mas, afinal, em matéria de gramática, o que é a regra, se não a formalização do uso?
Por esse caminho, a longo prazo,
acabaremos escrevendo à força de
clichês, numa língua empobrecida.
Não seria muito grave (sempre haverá poetas para inventar novos jeitos de se expressar) se uma coisa parecida não acontecesse com as
idéias. Como assim?
Saiu, em 2007, "The Culture of the
Amateur" (a cultura do amador), de
Andrew Keen. Keen não é um tecnófobo; ao contrário, é uma figura
do Vale do Silício e colabora com publicações on-line. Apesar disso (ou
por causa disso), ele escreveu uma
ata de acusação contra a constituição e a difusão do saber na internet.
Resumindo: estamos na era do
darwinismo digital das idéias, em
que o jeito de sobreviver é fazer barulho, ocupar espaço. O sonho de
uma informação produzida pelos
próprios cidadãos, sem intermediários, desaguou no pesadelo de centenas de milhões de cidadãos escrevendo indiscriminadamente sobre
qualquer aspecto do passado, do
presente e do futuro do mundo (segundo os cálculos de Keen, nasce
um blog a cada segundo).
Nunca foi tão fácil plantar notícias
falsas e criar consensos ao redor de
opiniões estapafúrdias: a difusão
multiplica a crença, e a crença dos
muitos vira autoridade.
Um exemplo: logo depois da inundação de Nova Orleans, as notícias
sobre estupros e assaltos no Superdome (onde se hospedavam os refugiados) foram plantadas na net; os
jornais acreditaram e repercutiram.
A legislação está perplexa e impotente: mesmo nos EUA, onde é fácil
perseguir a imprensa escrita por calúnia, é quase impossível se defender das "notícias" on-line. Quem
dispõe de meios técnicos básicos pode manipular qualquer informação,
destruir impunemente a reputação
de um candidato e por aí vai.
Prova pelo contrário: nos EUA,
nas pós-graduações em jornalismo,
é regra que nenhum fato pode ser
considerado conferido só por ter sido "encontrado", mesmo repetidamente, na internet. As próprias páginas on-line dos jornais são suspeitas: um hacker médio consegue facilmente construir uma "sombra",
que imita perfeitamente a página
que você imagina estar consultando.
Recebi recentemente, por e-mail,
uma coluna "minha" que nunca escrevi. No e-mail, ela aparecia como
um "copia e cola" da página on-line
do caderno Ilustrada da Folha da
quinta anterior. Fato curioso: o
texto não afirmava nada de extravagante, nada que eu não pudesse
assinar.
Em suma, Keen tem razão. Seus
alertas contra o "saber" duvidoso
espalhado pelo Google, pela Wikipédia e pela simples proliferação
da rede são justificados.
No entanto, seu livro lembra os
gritos de alerta que surgiram, no
começo do século 19, contra as possíveis perversões da democracia (e,
por exemplo, o barateamento do
custo da impressão de libelos anônimos). A idéia era que o clamor
dos muitos emudeceria a voz dos
poucos sábios que, de fato, sabem
do que eles falam.
Não há como discordar. Mas resta que, a cada vez que encontro um
argumento contra a desordem produzida pela livre e louca circulação
de informações e pensamentos,
ocorre-me o seguinte: num tribunal, se você for processado um dia,
por quem preferirá ser julgado?
Pela expertise (sem ironia) de um
juiz ou pela atrapalhada mistura de
razões, convicções e sentimentos
que animam os membros de um júri popular?
Eu preferiria o júri. Assim como
ainda prefiro a bagunça da internet
ao privilégio exclusivo de autoridades instituídas.
Desejo a todos um 2008 fascinante, confuso e variado como a
net -apenas corrigido pela capacidade (e o prazer) de separar, de vez
em quando, o joio do trigo.
ccalligari@uol.com.br
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