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FERREIRA GULLAR
Pânico no jardim
Convenceu-se de que o desequilíbrio ecológico fizera surgir ali um ser vegetal demoníaco
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SAIU DO elevador, no térreo, e tomou o corredor em direção à
porta do edifício. Era quase
meia-noite. Chegara ao apartamento dela às 19 horas em ponto para
uma noite de amor. Ela estava deitada na cama à sua espera, vestindo
uma camisola transparente, curta, a
porta do quarto apenas encostada. A
luz era pouca, mas suficiente para
ver seu rosto branco, seus olhos negros, seu sorriso cúmplice. "Para batalhas de amor, campos de plumas";
uma vertigem, de que ressurgira
molhado de felicidade. Deixou-se ficar, quase desmaiado, enquanto a
realidade ia aos poucos se recompondo em volta: as paredes, o armário, o espelho, as roupas na cadeira.
O corredor vazio o deixou passar
em silêncio até alcançar a porta que
dá para o jardim à frente do prédio.
O carro estava estacionado, lá fora, à
sua espera. Mal abriu a porta, foi
agredido pelo cheiro de jasmim.
Meia-noite é a hora em que os jasmineiros atacam com maior violência, deduziu, já que, tempos atrás, ao
atravessar mais cedo o jardim, o ataque tinha sido menos violento, como também, antes, numa tarde
muito clara, quando foi menos feroz
ainda. A conclusão inevitável era de
que os jasmineiros são mais agressivos no escuro. Era, além do mais,
sexta-feira, e não domingo e, aos domingos, parece, os jasmineiros não
atacam com a mesma ferocidade
que nos dias de semana.
Assim, foi numa sexta-feira, precisamente às 23 horas e 55 minutos,
que transpôs o portão, abrindo a pesada porta de ferro batido e vidro
que separa o hall do jardim. A porta
não estava trancada, pois assim a
deixa o porteiro do edifício até a
meia-noite em ponto. Nesse exato
instante, então, fecha-a com chave e,
por isso, procura sempre sair antes
da meia-noite, para não ter que chamá-lo e sentir-lhe o olhar irritado e a
má vontade de ter de levantar-se para lhe abrir a porta. Como não reside
ali, não tem a chave.
Desse modo, ao transpor o limiar,
sentiu o primeiro alarme aromático
que vinha daquele arbusto à sua esquerda, metros adiante, e recuou.
Fechou de novo a pesada porta de
ferro e vidro, e pensou em ligar para
Clarice Lispector. Naquele momento, olhou para o mostrador do seu
Seiko 5 stainless steel, viu que marcava um minuto para a meia-noite,
momento em que o porteiro já se teria levantado da cadeira na portaria
do prédio, ali ao lado, para vir trancar a porta.
Hesitou: saio ou não saio? Enfrento ou não enfrento a invisível ameaça vegetal? Sua hesitação se justificava, uma vez que, na semana anterior, ao atravessar inadvertidamente o jardim, fora envolvido pela sedução perfumosa do jasmineiro e, inebriado, num impulso incontrolável, arrancara do arbusto um cacho
de flores e aspirara fundamente seu
aroma. Mas se dera mal, pois aquele
perfume, aparentemente suave,
ocultava, como um punhal aromático, um odor selvagem que lesionara-lhe as narinas e o envenenara instantaneamente.
O veneno não tinha efeito imediato, mas era suficientemente poderoso para turvar-lhe a consciência e
aprisioná-lo em seus grilhões. Só
que talvez não caiba falar de grilhões, em se tratando de algo tão impalpável como são os aromas: sim,
um gás, era de fato um gás venenoso
que o arbusto produzia e guardava
naquelas cápsulas brancas, que, à
primeira vista, pareciam flores.
Uma artimanha insidiosa de que
fora vítima naquela mencionada
noite e de que só se livrara porque,
embora cambaleando, conseguira
chegar ao carro, parado em frente ao
edifício, abrira o porta-luvas e pegara o spray antialérgico, graças ao
qual evitara que o inchaço da mucosa nasal, cortando-lhe a respiração,
o asfixiasse.
Como o porteiro já se aproximasse, decidiu transpor definitivamente
o portão, mas, antes de descer os degraus, fixou o olhar temeroso no vulto embuçado do jasmineiro que, alguns passos adiante, soltava no ar o
seu veneno. E, naquele exato momento, entendeu o que se passara
nos últimos meses, já que até então
não havia ali nenhum jasmineiro; isto é, havia, sim, um arbusto, semelhante àquele, mas que nunca exalara perfume algum. Convenceu-se de
que, como conseqüência do desequilíbrio ecológico, surgira ali um
ser vegetal demoníaco, que ocupara
o antigo arbusto, embutira-se nele e
dera início a sua faina homicida.
Foi então que sacou do celular e
discou para Clarice Lispector, pois,
com ela, pela primeira vez, falara do
risco que representavam os jasmineiros, muitos anos antes de defrontar-se com esse que o ameaçava,
agora, num jardim da rua Senador
Eusébio, no Flamengo. Mas o telefone chamou, chamou, chamou e ninguém atendeu.
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