São Paulo, segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

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"Não gosto de ironia, gosto de humor"

Apesar de expor sua vida pessoal em filmes como "Sonhando Acordado", o diretor Michel Gondry rejeita um cinema vingativo

Diretor diz não ter orgulho de ser francês, apesar de ter "alguma sensibilidade francesa", e elogia o brasileiro "O Outro Lado da Rua"

DA REPORTAGEM LOCAL

Leia a seguir a continuação da entrevista com Michel Gondry. (MARCO AURÉLIO CANÔNICO)  

FOLHA - "Sonhando Acordado" saiu como o sr. imaginava?
GONDRY
- Já o vi muitas vezes, mais que qualquer outro filme que tenha feito, acho que por ele ser muito pessoal. Quando vejo Charlotte e Gael [García Bernal] encenando coisas que vivi, me sinto menos solitário.

FOLHA - Como o sr. o posiciona em sua filmografia?
GONDRY
- Acho que é como o primeiro disco de uma banda, em que você põe tudo o que o coração sente. É genuíno, posso me defender de qualquer coisa que seja dita contra ele. É algo emotivo. Olhando hoje, talvez eu pudesse ser mais objetivo, mais cínico, talvez tenha sido um pouco ingênuo ao filmá-lo, mas não me arrependo porque não quero fazer filmes cínicos.

FOLHA - Tanto "Brilho Eterno..." quanto "Sonhando Acordado" exploram relacionamentos falhos. Por que o tema lhe é caro?
GONDRY
- Não acho que seja só para mim. Fazer um relacionamento funcionar é uma das coisas mais difíceis da vida. Muitos psicólogos dizem que você precisa estar satisfeito consigo mesmo antes de entrar numa relação, mas não concordo com isso, acho que fomos feitos para estar com alguém. Mas isso vem com muitas dificuldades, que podem se tornar a parte mais importante da sua vida.

FOLHA - Há também um desencontro lingüístico em "Sonhando Acordado", os personagens falam línguas diferentes. Por que isso?
GONDRY
- Queria um filme sobre alguém que não se sente em casa na terra natal. Como foi o Gael, fiz a ligação da história com o México. A maioria dos meus relacionamentos foi em outra língua, o que trouxe limitações e liberdades na hora de expressar meus sentimentos, e muitas dessas experiências de desencontros verbais ficaram registradas na minha mente.

FOLHA - Seus filmes têm uma dose de humor e, não raro, insanidade. Quão importante é isso para o sr.?
GONDRY
- O humor é muito importante na vida e nos relacionamentos. Sem humor as coisas tendem a dar errado em algum momento e, se você leva tudo muito a sério, irá se sentir humilhado. Se você brocha, por exemplo, ou se encontra em alguma situação embaraçosa, só dá para contornar com humor.

FOLHA - Essa exposição de sua vida que o sr. faz nos filmes não gera reclamações de pessoas próximas?
GONDRY
- Sou sempre muito cuidadoso para não magoar as pessoas. Não gosto de assistir a filmes perversos, mesmo que não representem o ponto de vista do diretor. Não gosto de zombaria nem de ironia, gosto de humor e de tolices. Não gosto de filmes baseados em vinganças, motivo pelo qual não sou fã de Shakespeare.

FOLHA - No que sua vida mudou depois de ganhar um Oscar?
GONDRY
- Hoje tenho uma bela estatueta sobre minha geladeira. Na verdade, é muito satisfatório, mas é preciso pôr em contexto: o Oscar foi de Charlie Kaufman [o roteirista, em parceria com Gondry], tive uma participação de uns 20%.

FOLHA - Mas lhe abriu portas?
GONDRY
- Não, não acho que tenha mudado muito.

FOLHA - Como foi sua relação com Kaufman?
GONDRY
- Foi incrível trabalhar com ele, é uma pessoa brilhante e temos muitas idéias em comum sobre os absurdos que vemos no mundo, especialmente em relacionamentos. Também uma visão geométrica da narrativa, algo de que gosto. Talvez ele seja um pouco mais pessimista do que eu. Certamente sou mais ingênuo.

FOLHA - Como andam as filmagens de "Tôkyô!"?
MICHEL GONDRY
- Um processo de imersão. O filme tem dois outros episódios, de Leos Carax e Bong Joon-ho, que fez "O Hospedeiro". Minha história é baseada em uma HQ de Gabrielle Bell, sobre uma garota que se transforma em uma cadeira.

FOLHA - E qual o tom da história?
GONDRY
- Há um pouco de humor e de doçura, mas é triste no geral. É sobre uma garota que não sabe qual é seu propósito na vida e que se sente cada vez mais inútil, e acaba se transformando numa cadeira.

FOLHA - Qual a importância de sua cultura natal em seu cinema?
GONDRY
- Não tenho orgulho, no sentido político, de ser francês. Foi onde cresci, então, claro, deve ter me influenciado artisticamente. Estava bem interessado no surrealismo quando cresci, mas gosto muito de Charles Chaplin também. Certamente tenho alguma sensibilidade francesa, mas não tenho muito orgulho de ser francês. Não me importo com nacionalidades, mas com pessoas.

FOLHA - O que o sr. conhece de cinema brasileiro?
GONDRY
- Vi "Cidade de Deus", que me impressionou, apesar de eu não gostar de imagens de crianças com armas, ou de armas em geral. Se você põe uma arma na mão de alguém em um filme, consegue uma tensão e uma dinâmica imediatas, o que torna as coisas fáceis, mas sou um pouco contra isso. É claro que, em "Cidade...", aparentemente é próximo da realidade, então serve a um propósito. Vi esses dias outro filme de que gostei, sobre uma senhora que ajuda a polícia a resolver crimes. Ela vê, de sua janela, um sujeito matar a mulher. Sabe o título? ["O Outro Lado da Rua", informa o repórter] Gostei muito, a atriz [Fernanda Montenegro] era maravilhosa.

FOLHA - O sr. já visitou o Brasil?
GONDRY
- Não. Mas fiquei fascinado com Brasília por causa de um filme francês chamado "O Homem do Rio", com [Jean Paul] Belmondo, em que ele vai a Brasília quando ela está em construção. Acho que a cidade não está funcionando como foi planejada, mas me fascina essa utopia de conceber uma cidade a partir do nada, é algo mágico.


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