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"Não gosto de ironia, gosto de humor"
Apesar de expor sua vida pessoal em filmes como "Sonhando Acordado", o diretor Michel Gondry rejeita um cinema vingativo
Diretor diz não ter orgulho de ser francês, apesar de
ter "alguma sensibilidade francesa", e elogia o brasileiro "O Outro Lado da Rua"
DA REPORTAGEM LOCAL
Leia a seguir a continuação
da entrevista com Michel
Gondry.
(MARCO AURÉLIO CANÔNICO)
FOLHA - "Sonhando Acordado"
saiu como o sr. imaginava?
GONDRY - Já o vi muitas vezes,
mais que qualquer outro filme
que tenha feito, acho que por
ele ser muito pessoal. Quando
vejo Charlotte e Gael [García
Bernal] encenando coisas que
vivi, me sinto menos solitário.
FOLHA - Como o sr. o posiciona em
sua filmografia?
GONDRY - Acho que é como o
primeiro disco de uma banda,
em que você põe tudo o que o
coração sente. É genuíno, posso
me defender de qualquer coisa
que seja dita contra ele. É algo
emotivo. Olhando hoje, talvez
eu pudesse ser mais objetivo,
mais cínico, talvez tenha sido
um pouco ingênuo ao filmá-lo,
mas não me arrependo porque
não quero fazer filmes cínicos.
FOLHA - Tanto "Brilho Eterno..."
quanto "Sonhando Acordado" exploram relacionamentos falhos. Por
que o tema lhe é caro?
GONDRY - Não acho que seja só
para mim. Fazer um relacionamento funcionar é uma das coisas mais difíceis da vida. Muitos
psicólogos dizem que você precisa estar satisfeito consigo
mesmo antes de entrar numa
relação, mas não concordo com
isso, acho que fomos feitos para
estar com alguém. Mas isso
vem com muitas dificuldades,
que podem se tornar a parte
mais importante da sua vida.
FOLHA - Há também um desencontro lingüístico em "Sonhando
Acordado", os personagens falam
línguas diferentes. Por que isso?
GONDRY - Queria um filme sobre alguém que não se sente em
casa na terra natal. Como foi o
Gael, fiz a ligação da história
com o México. A maioria dos
meus relacionamentos foi em
outra língua, o que trouxe limitações e liberdades na hora de
expressar meus sentimentos, e
muitas dessas experiências de
desencontros verbais ficaram
registradas na minha mente.
FOLHA - Seus filmes têm uma dose
de humor e, não raro, insanidade.
Quão importante é isso para o sr.?
GONDRY - O humor é muito importante na vida e nos relacionamentos. Sem humor as coisas tendem a dar errado em algum momento e, se você leva
tudo muito a sério, irá se sentir
humilhado. Se você brocha, por
exemplo, ou se encontra em alguma situação embaraçosa, só
dá para contornar com humor.
FOLHA - Essa exposição de sua vida
que o sr. faz nos filmes não gera reclamações de pessoas próximas?
GONDRY - Sou sempre muito
cuidadoso para não magoar as
pessoas. Não gosto de assistir a
filmes perversos, mesmo que
não representem o ponto de
vista do diretor. Não gosto de
zombaria nem de ironia, gosto
de humor e de tolices. Não gosto de filmes baseados em vinganças, motivo pelo qual não
sou fã de Shakespeare.
FOLHA - No que sua vida mudou
depois de ganhar um Oscar?
GONDRY - Hoje tenho uma bela
estatueta sobre minha geladeira. Na verdade, é muito satisfatório, mas é preciso pôr em
contexto: o Oscar foi de Charlie
Kaufman [o roteirista, em parceria com Gondry], tive uma
participação de uns 20%.
FOLHA - Mas lhe abriu portas?
GONDRY - Não, não acho que tenha mudado muito.
FOLHA - Como foi sua relação com
Kaufman?
GONDRY - Foi incrível trabalhar com ele, é uma pessoa brilhante e temos muitas idéias
em comum sobre os absurdos que vemos no mundo, especialmente em relacionamentos.
Também uma visão geométrica
da narrativa, algo de que gosto.
Talvez ele seja um pouco mais
pessimista do que eu. Certamente sou mais ingênuo.
FOLHA - Como andam as filmagens de "Tôkyô!"?
MICHEL GONDRY - Um processo
de imersão. O filme tem dois
outros episódios, de Leos Carax
e Bong Joon-ho, que fez "O
Hospedeiro". Minha história é
baseada em uma HQ de Gabrielle Bell, sobre uma garota que
se transforma em uma cadeira.
FOLHA - E qual o tom da história?
GONDRY - Há um pouco de humor e de doçura, mas é triste no
geral. É sobre uma garota que
não sabe qual é seu propósito
na vida e que se sente cada vez
mais inútil, e acaba se transformando numa cadeira.
FOLHA - Qual a importância de sua
cultura natal em seu cinema?
GONDRY - Não tenho orgulho,
no sentido político, de ser francês. Foi onde cresci, então, claro, deve ter me influenciado artisticamente. Estava bem interessado no surrealismo quando
cresci, mas gosto muito de
Charles Chaplin também. Certamente tenho alguma sensibilidade francesa, mas não tenho
muito orgulho de ser francês.
Não me importo com nacionalidades, mas com pessoas.
FOLHA - O que o sr. conhece de cinema brasileiro?
GONDRY - Vi "Cidade de Deus",
que me impressionou, apesar
de eu não gostar de imagens de
crianças com armas, ou de armas em geral. Se você põe uma
arma na mão de alguém em um
filme, consegue uma tensão e
uma dinâmica imediatas, o que
torna as coisas fáceis, mas sou
um pouco contra isso. É claro
que, em "Cidade...", aparentemente é próximo da realidade,
então serve a um propósito.
Vi esses dias outro filme de
que gostei, sobre uma senhora
que ajuda a polícia a resolver
crimes. Ela vê, de sua janela,
um sujeito matar a mulher. Sabe o título? ["O Outro Lado da
Rua", informa o repórter] Gostei muito, a atriz [Fernanda
Montenegro] era maravilhosa.
FOLHA - O sr. já visitou o Brasil?
GONDRY - Não. Mas fiquei fascinado com Brasília por causa
de um filme francês chamado
"O Homem do Rio", com [Jean
Paul] Belmondo, em que ele vai
a Brasília quando ela está em
construção. Acho que a cidade
não está funcionando como foi
planejada, mas me fascina essa
utopia de conceber uma cidade
a partir do nada, é algo mágico.
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