São Paulo, quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

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MARCELO COELHO

Verão à paulista


"As Férias de M. Hulot", feito por Jacques Tati em 1953, surpreende pela atualidade

SIMONE DE Beauvoir escreve belas páginas em suas "Memórias de uma Moça Bem-Comportada", sobre como descobriu o prazer de viajar. O que encantava a filósofa, nas viagens que começou a fazer com Sartre, era o ato de lançar-se livremente ao mundo, num impulso, sem planos, sem bagagens, sem precauções.
Nada mais diferente, lembra ela, do que as viagens de férias com a família, nos tempos de sua infância.
Aquilo era o reino da correria, do nervosismo, dos pacotes em quantidade, da angustiada sensação de ter esquecido alguma coisa...
Faz pouco tempo, a Revista da Folha dedicou uma edição aos hábitos do paulista quando está no litoral. O hábito número 1, sem dúvida, é o de abarrotar-se de apetrechos para ir à praia.
Agora já inventaram uma espécie de carrinho, que acomoda toda a matalotagem de forma minimamente racional. Quando eu era pequeno, cada objeto se destacava pela impraticidade.
Se me encarregavam de carregar o guarda-sol, a estaca de baixo sempre escorregava dos meus braços; fosse o caso de levar também a esteira, esta se movia para formar um outro ângulo, de modo que depois de poucos passos eu acabava equilibrando uma espécie de asterisco desgovernado, como as varetas de uma pipa, que também me acontecia de levar.
E as cadeiras de alumínio? Marca Rochedo, em três tamanhos diferentes, todos desconfortáveis, com tiras de náilon que depois de um tempo se rompiam. Mas tenho uma lembrança terna desse objeto.
É que, no final da tarde, um casal de vizinhos idosos pegava suas cadeiras de alumínio e, em vez de ir à praia, se punha na calçada, bem na entrada do prédio. O homem, completamente calvo, usava um chapéu de abas curtas, feito de um material que parecia vime, de tão duro.
A mulher, bastante obesa, fixava os olhos à frente.
Ocorreu-me que, naquela cidade praiana dos anos 60, já então tomada do tumulto e trânsito paulistas, o casal reproduzia um hábito puramente interiorano, o de "tomar a fresca", e de distrair-se na contemplação das pessoas que passam.
É assim que a cultura persiste, contra todas as hostilidades do ambiente moderno. Também o hábito de encher o carro de mantimentos parece continuar, embora hipermercados não faltem no litoral.
Saiu um pacote de DVDs com os principais filmes de Jacques Tati, e "As Férias de M. Hulot", feito pelo comediante em 1953, surpreende pela atualidade. Naquele hotelzinho de praia na França, havia, como hoje, as pessoas incapazes de se "desconectar". Em vez do computador, é pelo telefone que um hóspede tenta, ansioso, saber das últimas cotações da Bolsa de Londres ou de Frankfurt.
Na estação de trem, rebanhos de turistas seguem as orientações de um alto-falante cujo som, roufenho e precário, leva-os para todas as plataformas, menos a certa.
Outro alto-falante, agora no hotel, transmite a mensagem radiofônica de um ministro. O homem fala de crise econômica, do déficit externo, da necessidade de poupar. No salão do hotelzinho, os turistas se preparam para um baile à fantasia.
Bagagens em excesso, comportamento e hábitos uniformes, dependência de um aparato tecnológico que sempre funciona mal. Mas nem tudo, hoje, se parece com o mundo de Jacques Tati. A crise é bem mais séria.
As pequenas subversões de M. Hulot, dentro desse ambiente, são mais poéticas do que engraçadas. As confusões que ele cria são, muitas vezes, fruto de uma mistura peculiar de cortesia e de desconsideração por tudo ao seu redor.
Varas de pescar se engancham em chapéus, cabos de guarda-chuva se prendem uns aos outros, bengalas se intrometem onde não deveriam. Mais do que imaginário sexual que pode estar presente no filme, o que parece simbolizar-se aqui, nesse pálido humor de enganchamentos acidentais, é a tentativa do ser humano de estabelecer vínculos inesperados, e que sempre se revelam precários, com seus semelhantes.
Mas o mundo do turismo, das famílias, das bagagens é homogêneo demais, compacto e atulhado demais para esse tipo de ligações: M. Hulot fica sozinho, embora conte, é verdade, com a simpatia de um ou outro hóspede levemente excêntrico, para quem as férias deveriam ser, mas não são, uma experiência de liberdade.

coelhofsp@uol.com.br


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