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CARLOS HEITOR CONY
Shows de realidade e instalações interativas
Deus é testemunha de que
nada tenho contra a inventividade humana, sobretudo a inventividade dos artistas. Nem
sempre os aprecio, mas os respeito. Não fosse a criatividade de
nossos antepassados, ainda estaríamos nas cavernas, arrastando
nossas mulheres pelos cabelos, comendo a carne crua dos animais
que seríamos obrigados a caçar.
Não teríamos dominado o fogo,
inventado a roda e descoberto a
pólvora.
No terreno artístico propriamente dito, ficaríamos nos alaúdes que os judeus penduravam
nos salgueiros de Babilônia e na
cítara com que Nero cantou o incêndio de Roma. Felizmente, somos inventivos, e, toda vez que
abro um guarda-chuva, louvo o
engenho e a arte que devemos
cantar e espalhar por toda parte.
Mas embirro com a recente mania das instalações. Longe de
mim criticar a vanguarda que
despreza a obra de arte emoldurada dos museus e das casas burguesas. Não vou dizer que devemos destruir toda a obra da Renascença, as catedrais góticas, as
fugas de Bach, os sonetos de Shakespeare. É para a frente que se
anda e as instalações -segundo
leio nas colunas especializadas-
representam um passo à frente na
arte, contaminando o mundo e a
nossa vida cotidiana com a denúncia de suas propostas.
Mesmo assim, fiquei estarrecido
com o recente incêndio numa casa noturna de Rhode Island, semana passada. Evidente que se
tratava de uma obra de arte interativa. Artistas do rock e assistentes, iluminados por fogos de artifício, obtinham aquilo que Ezra
Pound chamava de "punti luminosi" -e bota luminoso nisso.
Tão luminoso que os fogos de
artifício, que davam à coreografia
do espetáculo um plus pirotécnico, botaram fogo literalmente não
apenas nas cortinas do cenário,
mas nos próprios assistentes, 95
dos quais morreram queimados
em menos de três minutos. E outros tantos tiveram queimaduras
de diferentes graus e levarão pela
vida afora a lembrança de um
show realmente inesquecível.
Pelo depoimento de um cameraman que gravava o espetáculo
para uma TV alternativa, não
chegou a haver pânico quando o
incêndio começou. Pelo contrário: a empolgação chegou ao auge, pois as chamas que invadiam
o recinto e a fumaça que entupia
os pulmões foram consideradas
estupendas, uma bolação de gênio do diretor que tanto ousara.
Se a proposta do rock e do espetáculo era ser quente, ninguém podia imaginar que chegasse a ser
tão quente. E muita gente morreu
em orgasmos estéticos, consumida pela interação do espetáculo,
em que todos eram atores e não
simples e passivos assistentes.
Em termos de "reality show",
atingiu-se um estágio que dificilmente será ultrapassado. Ver Nápoles e depois morrer já era. Na verdade, já vi Nápoles uma centena de vezes e, embora haja opiniões contrárias, ainda não soube que morri. Nem mesmo fui a Mori -lugarejo depois da cidade e que é responsável pelo duplo sentido do ditado: "Ver Nápoles e depois... Mori".
A inventividade dos promotores
do show de Rhode Island abrirá
generosos espaços na concepção e
realização de novos e mais incrementados eventos artísticos. Afinal, se olharmos o desastre das
duas torres do World Trade Center com olhos criadores, sem a paranóia da mediocridade humana, tivemos a oportunidade de
consumir um portentoso espetáculo que dificilmente será repetido. Qual o produtor disposto a gastar milhões de dólares com
dois jatos de verdade chocando-se
com dois edifícios também de verdade e matando mais de 3 mil figurantes de verdade e a baixíssimo custo?
Nem Cecil B. de Mille, que produzia filmes com multidões de extras, seria capaz de tal e tanto. O 11 de setembro deverá ficar como
o verdadeiro e único "maior espetáculo da Terra", merecendo
aquele slogan publicitário: "Você
nunca verá um espetáculo como
este". Mas por pouco tempo, pois
a criatividade humana não tem
limites, e de repente o show das
duas torres gêmeas e o da boate
de Rhode Island serão consideradas experimentais, tentativas
modestas de se alcançar o mais e
o melhor.
Não faz muito, após um almoço
no restaurante do Museu da República, antigo Palácio do Catete,
passeando pelo jardim que lhe fica atrás, tive de dar uma volta para não esbarrar num caixão de
defunto aberto, sei lá se tinha alguém dentro. Um pouco assustado, comentei com um guarda aquele despropósito.
Ele me tranquilizou. Era uma
instalação de artistas de vanguarda. Encaminhou-me a uma moça
da produção que me explicou a
proposta do artista que colocara
ali o caixão. Era uma denúncia
contra os jardins bem comportados da alta burguesia do século
19. Enquanto na Amazônia
transformam a floresta num deserto, nas cidades alienadas como
o Rio fabricam-se jardins disciplinados por europeus que não entendem a ecologia do trópico.
Julgando-me interessado, me
presenteou com um prospecto que
transcrevia o manifesto do grupo
de artistas que realizava aquela
instalação. No final do manifesto,
vinham os agradecimentos de
praxe aos que tornaram possível
o evento: uma companhia telefônica, um banco de investimentos
e a Funerária Santa Terezinha do
Menino Jesus.
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