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São Paulo, sexta-feira, 28 de fevereiro de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

Shows de realidade e instalações interativas

Deus é testemunha de que nada tenho contra a inventividade humana, sobretudo a inventividade dos artistas. Nem sempre os aprecio, mas os respeito. Não fosse a criatividade de nossos antepassados, ainda estaríamos nas cavernas, arrastando nossas mulheres pelos cabelos, comendo a carne crua dos animais que seríamos obrigados a caçar. Não teríamos dominado o fogo, inventado a roda e descoberto a pólvora.
No terreno artístico propriamente dito, ficaríamos nos alaúdes que os judeus penduravam nos salgueiros de Babilônia e na cítara com que Nero cantou o incêndio de Roma. Felizmente, somos inventivos, e, toda vez que abro um guarda-chuva, louvo o engenho e a arte que devemos cantar e espalhar por toda parte.
Mas embirro com a recente mania das instalações. Longe de mim criticar a vanguarda que despreza a obra de arte emoldurada dos museus e das casas burguesas. Não vou dizer que devemos destruir toda a obra da Renascença, as catedrais góticas, as fugas de Bach, os sonetos de Shakespeare. É para a frente que se anda e as instalações -segundo leio nas colunas especializadas- representam um passo à frente na arte, contaminando o mundo e a nossa vida cotidiana com a denúncia de suas propostas.
Mesmo assim, fiquei estarrecido com o recente incêndio numa casa noturna de Rhode Island, semana passada. Evidente que se tratava de uma obra de arte interativa. Artistas do rock e assistentes, iluminados por fogos de artifício, obtinham aquilo que Ezra Pound chamava de "punti luminosi" -e bota luminoso nisso.
Tão luminoso que os fogos de artifício, que davam à coreografia do espetáculo um plus pirotécnico, botaram fogo literalmente não apenas nas cortinas do cenário, mas nos próprios assistentes, 95 dos quais morreram queimados em menos de três minutos. E outros tantos tiveram queimaduras de diferentes graus e levarão pela vida afora a lembrança de um show realmente inesquecível.
Pelo depoimento de um cameraman que gravava o espetáculo para uma TV alternativa, não chegou a haver pânico quando o incêndio começou. Pelo contrário: a empolgação chegou ao auge, pois as chamas que invadiam o recinto e a fumaça que entupia os pulmões foram consideradas estupendas, uma bolação de gênio do diretor que tanto ousara. Se a proposta do rock e do espetáculo era ser quente, ninguém podia imaginar que chegasse a ser tão quente. E muita gente morreu em orgasmos estéticos, consumida pela interação do espetáculo, em que todos eram atores e não simples e passivos assistentes.
Em termos de "reality show", atingiu-se um estágio que dificilmente será ultrapassado. Ver Nápoles e depois morrer já era. Na verdade, já vi Nápoles uma centena de vezes e, embora haja opiniões contrárias, ainda não soube que morri. Nem mesmo fui a Mori -lugarejo depois da cidade e que é responsável pelo duplo sentido do ditado: "Ver Nápoles e depois... Mori".
A inventividade dos promotores do show de Rhode Island abrirá generosos espaços na concepção e realização de novos e mais incrementados eventos artísticos. Afinal, se olharmos o desastre das duas torres do World Trade Center com olhos criadores, sem a paranóia da mediocridade humana, tivemos a oportunidade de consumir um portentoso espetáculo que dificilmente será repetido. Qual o produtor disposto a gastar milhões de dólares com dois jatos de verdade chocando-se com dois edifícios também de verdade e matando mais de 3 mil figurantes de verdade e a baixíssimo custo?
Nem Cecil B. de Mille, que produzia filmes com multidões de extras, seria capaz de tal e tanto. O 11 de setembro deverá ficar como o verdadeiro e único "maior espetáculo da Terra", merecendo aquele slogan publicitário: "Você nunca verá um espetáculo como este". Mas por pouco tempo, pois a criatividade humana não tem limites, e de repente o show das duas torres gêmeas e o da boate de Rhode Island serão consideradas experimentais, tentativas modestas de se alcançar o mais e o melhor.
Não faz muito, após um almoço no restaurante do Museu da República, antigo Palácio do Catete, passeando pelo jardim que lhe fica atrás, tive de dar uma volta para não esbarrar num caixão de defunto aberto, sei lá se tinha alguém dentro. Um pouco assustado, comentei com um guarda aquele despropósito.
Ele me tranquilizou. Era uma instalação de artistas de vanguarda. Encaminhou-me a uma moça da produção que me explicou a proposta do artista que colocara ali o caixão. Era uma denúncia contra os jardins bem comportados da alta burguesia do século 19. Enquanto na Amazônia transformam a floresta num deserto, nas cidades alienadas como o Rio fabricam-se jardins disciplinados por europeus que não entendem a ecologia do trópico.
Julgando-me interessado, me presenteou com um prospecto que transcrevia o manifesto do grupo de artistas que realizava aquela instalação. No final do manifesto, vinham os agradecimentos de praxe aos que tornaram possível o evento: uma companhia telefônica, um banco de investimentos e a Funerária Santa Terezinha do Menino Jesus.


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