São Paulo, sábado, 28 de fevereiro de 2004

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"GRAMÁTICAS DA CRIAÇÃO"

Crítico vai da Bíblia a Platão para examinar os padrões humanos da produção artística

Steiner põe Deus e o diabo na arena criativa

Manuel H. de Leon/AFP
O escritor George Steiner, cujo livro é comparável ao "Mimesis"


MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Por que é tão difícil discursar sobre o nada; sobre o vácuo, digamos, daqueles nanossegundos que precedem o "big-bang"? E por que toda criação humana (teológica, filosófica e artística) é um ato de protesto contra a não existência?
Essas são algumas das indagações de que se ocupa o pensador norte-americano George Steiner, em seu livro "Gramáticas da Criação", lançado pela editora Globo com excelente tradução de Sérgio Augusto de Andrade.
Trata-se de um livro assombroso, não só pelas perguntas que pretende responder, mas pela habitual erudição do crítico, que lhe permite transitar com desenvoltura pelo Antigo e pelo Novo Testamentos, pelos textos de Platão, Dante, Shakespeare e Heiddeger, pelas criações dadá de Marcel Duchamp, pela música de Schönberg e Ricky Martin (embora ele se mostre bem menos à vontade com este último).
Mais impressionante, porém, é o fato de que, em meio a tantas referências, extraídas das mais diversas artes e entretecidas num possível barroquismo monumentalista, no fim e ao cabo tenhamos a impressão de que há uma unidade de base, um sentido subjacente a tal arrazoado.
Uma analogia poderia ser feita com outro fantástico produto da erudição, o clássico "Mimesis", de Auerbach, que também parte dos gregos e da Bíblia (e passa por Dante) para estabelecer a "representação da realidade na literatura ocidental".
Mas Auerbach é mais individualmente exaustivo e cronologicamente organizado. Sua ambição é menor: ele não pretende discutir as outras formas artísticas (musicais e pictóricas, por exemplo), de par com a filosofia e a teologia, isso sem falar da ciência, a fim de examinar os padrões humanos de criação (em oposição ao divino). O discurso de Steiner sempre beira o epistemológico.
Se Auerbach visava à "representação da realidade", Steiner elege a cosmologia da representação ou representações. Embora o discurso do segundo pareça estratosférico, há aplicações muito cotidianas para o seu pensamento.
Ele mostra, por exemplo, como o "kitsch" e a conversão do poético ao imediatismo e ao lucro contêm um componente "rigorosamente diabólico". Trocando em miúdos, tanto o último sucesso do axé quanto o best-seller de Paulo Coelho inevitavelmente teriam, por seu desrespeito à perfeição original, parte com o tinhoso.
Satã teria outros aliados: os críticos. Enquanto Jeová, no "Livro de Jó", ocupa-se de sua "criação pela criação", ou de sua "arte pela arte", o diabo o desafia a esmiuçar o processo criador, pretendendo encontrar a falha no "muito bom" das Escrituras.
Hoje, nem Belzebu escapa. Como Steiner indica, o século 20 foi o mais cruento da história. Cem milhões morreram, vítimas de guerra, fome e genocídios. Para o estudioso, o fim do ideal clássico e judaico do homem como "animal da linguagem" foi decretado pela "antilinguagem dos campos de concentração".
Com a banalização da morte, a própria imortalidade, que dela emana, perde o sentido. A arte, esse desafio ao pó, passa a sobreviver de cacos, de incompletude, de auto-ironia e na exaltação da tecnologia, o grande baal dos novos tempos. O problema não reside no ateísmo, mas no "agnosticismo inócuo, o vento morno que sopra sobre a superfície de nosso pós-modernismo". Incapaz de engendrar no vácuo, o homem cai no tatibitate, vítima do esvaziamento da palavra. No princípio, era o Verbo. Após o fim, quem pode contar o que será? Ou o que será do "contar"?


Gramáticas da Criação
    
Autor: George Steiner
Tradução: Sérgio Augusto de Andrade
Editora: Globo
Quanto: R$ 45 (368 págs.)



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