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"GRAMÁTICAS DA CRIAÇÃO"
Crítico vai da Bíblia a Platão para examinar os padrões humanos da produção artística
Steiner põe Deus e o diabo na arena criativa
Manuel H. de Leon/AFP
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O escritor George Steiner, cujo livro é comparável ao "Mimesis" |
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Por que é tão difícil discursar
sobre o nada; sobre o vácuo,
digamos, daqueles nanossegundos que precedem o "big-bang"?
E por que toda criação humana
(teológica, filosófica e artística) é
um ato de protesto contra a não
existência?
Essas são algumas das indagações de que se ocupa o pensador
norte-americano George Steiner,
em seu livro "Gramáticas da Criação", lançado pela editora Globo
com excelente tradução de Sérgio
Augusto de Andrade.
Trata-se de um livro assombroso, não só pelas perguntas que
pretende responder, mas pela habitual erudição do crítico, que lhe
permite transitar com desenvoltura pelo Antigo e pelo Novo Testamentos, pelos textos de Platão,
Dante, Shakespeare e Heiddeger,
pelas criações dadá de Marcel Duchamp, pela música de Schönberg
e Ricky Martin (embora ele se
mostre bem menos à vontade
com este último).
Mais impressionante, porém, é
o fato de que, em meio a tantas referências, extraídas das mais diversas artes e entretecidas num
possível barroquismo monumentalista, no fim e ao cabo tenhamos
a impressão de que há uma unidade de base, um sentido subjacente a tal arrazoado.
Uma analogia poderia ser feita
com outro fantástico produto da
erudição, o clássico "Mimesis", de
Auerbach, que também parte dos
gregos e da Bíblia (e passa por
Dante) para estabelecer a "representação da realidade na literatura ocidental".
Mas Auerbach é mais individualmente exaustivo e cronologicamente organizado. Sua ambição é menor: ele não pretende discutir as outras formas artísticas
(musicais e pictóricas, por exemplo), de par com a filosofia e a teologia, isso sem falar da ciência, a
fim de examinar os padrões humanos de criação (em oposição
ao divino). O discurso de Steiner
sempre beira o epistemológico.
Se Auerbach visava à "representação da realidade", Steiner elege
a cosmologia da representação ou
representações. Embora o discurso do segundo pareça estratosférico, há aplicações muito cotidianas
para o seu pensamento.
Ele mostra, por exemplo, como
o "kitsch" e a conversão do poético ao imediatismo e ao lucro contêm um componente "rigorosamente diabólico". Trocando em
miúdos, tanto o último sucesso
do axé quanto o best-seller de
Paulo Coelho inevitavelmente teriam, por seu desrespeito à perfeição original, parte com o tinhoso.
Satã teria outros aliados: os críticos. Enquanto Jeová, no "Livro
de Jó", ocupa-se de sua "criação
pela criação", ou de sua "arte pela
arte", o diabo o desafia a esmiuçar
o processo criador, pretendendo
encontrar a falha no "muito bom"
das Escrituras.
Hoje, nem Belzebu escapa. Como Steiner indica, o século 20 foi
o mais cruento da história. Cem
milhões morreram, vítimas de
guerra, fome e genocídios. Para o
estudioso, o fim do ideal clássico e
judaico do homem como "animal
da linguagem" foi decretado pela
"antilinguagem dos campos de
concentração".
Com a banalização da morte, a
própria imortalidade, que dela
emana, perde o sentido. A arte,
esse desafio ao pó, passa a sobreviver de cacos, de incompletude,
de auto-ironia e na exaltação da
tecnologia, o grande baal dos novos tempos. O problema não reside no ateísmo, mas no "agnosticismo inócuo, o vento morno que
sopra sobre a superfície de nosso
pós-modernismo". Incapaz de
engendrar no vácuo, o homem cai
no tatibitate, vítima do esvaziamento da palavra. No princípio,
era o Verbo. Após o fim, quem
pode contar o que será? Ou o que
será do "contar"?
Gramáticas da Criação
Autor: George Steiner
Tradução: Sérgio Augusto de Andrade
Editora: Globo
Quanto: R$ 45 (368 págs.)
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