São Paulo, terça-feira, 28 de fevereiro de 2006

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Hip hop nas telas

50 Cent, astro do gangsta rap que teve passado criminoso, inspira e estrela "Get Rich or Die Tryin"

STÉPHANE DAVET
DO "LE MONDE"

Astro do hip hop americano desde 2003, ano em que saiu seu primeiro álbum, "Get Rich or Die Tryin'", Curtis Jackson -o nome real de 50 Cent- já vendeu mais de 20 milhões de álbuns. Este nova-iorquino de 30 anos, lançado pelo rapper Eminem e o produtor Dr. Dre, encarna a vitalidade do gangsta rap, um estilo que glorifica o modo de vida dos pequenos criminosos do gueto.
Seguindo o exemplo de outros grandes nomes do hip hop, 50 Cent, à frente de sua empresa G-Unit, multiplica seu sucesso musical em uma multidão de produtos derivados: roupas, calçados, videogames e, agora, um filme. O artista faz o papel principal de "Get Rich or Die Tryin'", dirigido pelo irlandês Jim Sheridan. Trata-se de uma ficção inspirada em parte na vida do garoto nascido em Jamaica, bairro pobre do Queens, em Nova York, que, após o assassinato de sua mãe, traficante de crack, cresceu em meio ao universo das gangues e passou por tiroteios e pela prisão antes de tornar-se milionário do rap.

 

Pergunta - Até que ponto o filme "Get Rich Or Die Tryin", no qual você faz o papel principal, é fiel à sua biografia?
50 Cent -
O filme é 70% verdadeiro, especialmente a parte que fala de minha infância. Terrence Winter, o roteirista, veio falar comigo muitas vezes para reunir informações sobre minha vida.

Pergunta - Não é doloroso mergulhar nessas recordações?
50 Cent -
É mais terapêutico do que doloroso. Isso me permitiu tomar mais consciência daquilo que vivi. Assistindo ao filme, as pessoas vão entender melhor o que eu coloco de mim mesmo em minha música. Quando me perguntam sobre meu passado, as pessoas me acusam de não ter compaixão ou remorso. Mas eu cresci naquele ambiente, as coisas me foram impostas antes que eu pudesse optar.
Nunca conheci meu pai. Minha mãe tomou um rumo errado para me sustentar. Ela me teve aos 15 anos e morreu aos 23, quando eu tinha oito anos. Eu já tinha me adaptado àquilo ao qual ela me condicionou. Após a morte de minha mãe, fui ver as pessoas com quem ela andava, pessoas que não tinham problemas de dinheiro. Essas pessoas me compravam sapatos e coisas bonitas. Quando me deixaram começar a traficar, acharam que estavam me fazendo um favor ainda maior. Para elas, isso me daria mais autonomia financeira. Em vez de passar anos estudando, de tentar pagar meus estudos para então encontrar um trabalho de merda, eu podia continuar a viver no bairro e, depois de alguns meses, sonhar com Mercedes-Benz e BMWs.

Pergunta - Quais eram os símbolos do sucesso, para você?
50 Cent -
Roupas, jóias bonitas, carros. Passei tanto tempo olhando coisas que eu não tinha como comprar... A casa dos meus avós era o bem mais precioso que minha família jamais teve. Ela valia US$ 100 mil. Hoje tenho carros que valem o dobro disso no estacionamento da minha casa.

Pergunta - Que diferença existe entre Curtis Jackson e 50 Cent?
50 Cent -
50 Cent é todo agressividade. O meio do hip hop é tão competitivo que você não pode deixar transparecer nenhuma vulnerabilidade. Mas a vida sempre foi assim para mim. No filme, o momento que eu mais temia era a cena em que tinha que chorar. É claro que tenho emoções, mas aprendi a enterrá-las. No lugar de onde venho, se você demonstra seu lado fraco, você é vítima.

Pergunta - Em suas canções e no gangsta rap de modo geral, muitas vezes é difícil diferenciar o que é realismo do que são desvarios hollywoodianos.
50 Cent -
Quando você lança um álbum comercial, você quer que ele agrade a todos. Para isso é preciso uma proposta mais geral, uma arte da encenação, da amplificação. Sou muito eficiente em criar uma música que enlouqueça os caras do meu bairro. Eles querem ouvir uma música agressiva, porque o ambiente do bairro é assim. A maioria das minhas músicas é baseada na realidade, dentro da linha daquilo que vivi, da violência que conheci. A maioria dos rappers não pode dizer o mesmo. Eles acham que têm credibilidade por usarem a gíria das ruas. Eles imitam aquilo do qual têm medo. Se você já esteve preso, você geralmente evita falar disso. Não existe nada pior do que estar em cana.
No lugar de onde eu venho, se você andar na rua fazendo pose de assassino ou bandidão, geralmente vai acabar sendo apagado.

Pergunta - Parece que a vida dos rappers é igualmente perigosa. Você muitas vezes anda com colete à prova de balas. É porque você já foi alvo de ameaças?
50 Cent -
Quando você vem lá de baixo, seu sucesso provoca dois tipos de reação nos outros: podem se inspirar em você ou sentir inveja. Eu ando de colete à prova de balas porque já atiraram em mim. É um reflexo, como aquele da pessoa que sofre um acidente de automóvel e depois passa a usar o cinto de segurança.

Pergunta - Você acredita no sonho americano?
50 Cent -
Mas eu sou o sonho americano! Se você não acredita em você mesmo, quem vai acreditar? A pobreza tem que lhe dar uma motivação a mais. Eu comecei do nada, o rap me salvou, e eu compreendi que o interesse despertado pela música podia se estender para várias outras atividades. Delego responsabilidades, mas sou o patrão. Ninguém deve atrasar o processo de progressão. Senão, como vai poder competir nessa corrida?

Pergunta - No gangsta rap, são constantes as referências à atividade dos cafetões ("pimps"), e as mulheres muitas vezes são tratadas como "cachorras" ou "vadias" ("bitch"). O que justifica esse machismo?
50 Cent -
As garotas não hesitam em tratar-se de "bitch" entre elas e a rir disso. Agora, se um sujeito mexe com uma mulher na rua e a chama de "bitch", então está faltando com o respeito. Tudo depende do contexto. O rock talvez fale de putas e cafetões menos do que faz o rap, mas isso não impede os roqueiros de recorrer a elas e eles quando estão em turnê. Se eu falo disso é porque tenho que mostrar todos os detalhes do meio ambiente.

Pergunta - Você se enxerga como exemplo?
50 Cent -
Meu sucesso deve ser um exemplo, mas não o que digo nas minhas canções. Como artista, tenho que ter a liberdade de escrever o que eu quiser, sem me preocupar com o teor moral.
Digo algumas coisas pelo prazer de chocar. Isso tem o mesmo valor que uma cena de ação no cinema. Faço isso para dar maior efeito aos meus discos. Se um menino não entende, cabe a seus pais explicar o sentido a ele.


Tradução Clara Allain

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