São Paulo, quarta-feira, 28 de março de 2001

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MÚSICA ERUDITA/CRÍTICA

Bravo, Paavo! Bela Beth! Uma grande temporada finlandesa da Osesp

ARTHUR NESTROVSKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Foram duas semanas de nomes difíceis (Batiashvili, Paavo, Poles, Koussevitzky) e música fácil (de ouvir, não de tocar). O regente convidado Paavo Berglund fez a Osesp tocar tão bem quanto sabe, o que não é pouco, e em alguns momentos fez a orquestra tocar também como não sabia, o que é muito mais. Ganhou o respeito de todos ao cancelar a apresentação da "Sinfonia nš 8" de Shostakovich, porque a partitura enviada pela editora Schirmer estava cheia de erros, e regeu um lindo Brahms no lugar. Deixou São Paulo falando bem da orquestra, que ficou falando bem dele.
O septuagenário regente canhoto da Finlândia é a própria imagem da experiência. Fogos nórdicos queimam a frio; mas é uma emoção e tanto escutar Beethoven ou Schubert traduzidos para as noites brancas e auroras sem fim. Os violinos, em particular, ganham outro tom, especialmente nas notas longas e agudas, que ficam mais agudas e longas e parecem mais azuladas que de hábito. Encantamento e fogo ficaram por conta da violinista Elisabeth Batiashvili, solista do "Concerto para Violino e Orquestra" de Beethoven (1772-1827), no sábado retrasado. Ao final do "Concerto", a platéia gritou "bravo!", mas era como se tivesse urrado "gol!" -e não era para menos. Aos 21 anos de idade, a musa da Geórgia parece a um passo de cruzar aquela fronteira indecifrável que separa o mero grande talento da fama universal (mais contratos, vídeos, glória, vestidos e fortuna).
Do início ao fim, Batiashvili tocou com um sentido impressionante do que queria de Beethoven e do que quer de si. Seja na ação de graças do segundo movimento, seja nas cadências de "Allegro" e de "Rondó", que interpreta com ímpetos de roqueira, ela faz do despojamento uma contrapartida do virtuosismo. Toca tudo com facilidade, mas tem a elegância de não fazer parecer fácil. Com seu violino Gagliano, encheu a sala de Beethoven.
Já que falamos em vestidos: oxalá o vestido dela, não só o violino, fosse Gagliano. Mas a estranha maldição que castiga as musicistas do mundo inteiro continua vigente. Exceção honrosa para o naipe de violoncelos da Osesp.
Que aliás esteve muito bem na "Sinfonia nš 9" de Schubert (1797-1828). É pena não haver espaço para falar desse Schubert, regido com fluência por Berglund. Vale anunciar que poderá ser visto de novo, no dia 13 de maio (às 22h30), quando estréia uma série mensal da Osesp na TV Cultura.
Começar o segundo programa, no sábado passado, com a "Abertura Trágica" de Brahms (1833-97) parecia uma piada, depois do desastre com a partitura de Shostakovich. Resposta da orquestra: esqueça, escute o decrescendo incrível antes da recapitulação, com Ricardo Bologna mostrando de que servem os tímpanos, e veja os acentos de melancolia nos clarinetes em terças, nas flautas, no pizicato das cordas. A Osesp gosta de Brahms.
Ana Valéria Poles, spalla dos contrabaixos, há muito merecia solar um concerto. A dificuldade é que, tirando Bottesini e Dittersdorf, que não são exatamente obras-primas, não sobra quase nada. Sobra Sergei Koussevitzky (1874-1951), honrada figura da música do século 20, mecenas de vários compositores, regente da Sinfônica de Boston, criador do Festival de Tanglewood, professor de Bernstein e Eleazar de Carvalho, entre outros, ex-contrabaixista e compositor de um pobre concerto para contrabaixo e orquestra de 1905.
Estranho pensar nessa música como a de um dos maiores apóstolos da música moderna. Começa como Tchaikovsky, prossegue como Glinka, termina sem ser de ninguém. A acústica é implacável com o contrabaixo, por menor que seja a orquestra acompanhando. Ana Valéria passou a maior parte do concerto mergulhada nos altos da primeira corda, a aranha da mão numa ginástica complexa. Se faltou música, não foi culpa dela. A platéia a aplaudiu por quem é e redobrou os aplausos no Piazzolla do bis.
A temporada finlandesa encerrou-se com a "Sinfonia nš 4" de Brahms. Era a predileta de Schoenberg, que admirava em especial o jogo de permutações de intervalos, ao longo do primeiro movimento -uma engenharia sofisticada, mas que jamais deixa de comover até o ouvinte mais inocente. (Só do ponto de vista técnico, porque Brahms não é para os inocentes de espírito.)
Momento lindo: o sóbrio coral dos trombones no último movimento. Outro: o grande tema dos violoncelos, no "Andante".
Paavo Berglund fez da "Quarta" uma grande demonstração da ciência do contratempo. Notas e notas que caem no tempo trocado, a orquestra oscilando entre superfície e fundo, como se as ambiguidades da expressão encontrassem uma figura material.
Um último comentário. Ainda há quem ponha em dúvida a acústica da Sala São Paulo. Mas quem assistiu a esses concertos do mezanino, a alguns milhares de metros do palco, pode testemunhar como é bonita a orquestra vista do alto e como soa bem. A gente fica pequeno lá em cima, mas a orquestra fica ainda maior. A música é de arrepiar.


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