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JOÃO PEREIRA COUTINHO
A Deus o que é de César
A juíza alemã não se comoveu e, em momento inspirado, citou o Alcorão para lembrar os deveres femininos
UMA PERGUNTA, leitores: o que
acontece quando os vasos sanitários das prisões inglesas
estão virados para Meca? A questão
assaltou as consciências britânicas
uns meses atrás, e a resposta foi imediata: para evitar ofensas ao Islã, necessário se torna destruir e reconstruir grande parte dos banheiros
prisionais de Sua Majestade.
Objetivo nobre: evitar que os reclusos islâmicos insultem o profeta
em posição sentada. Claro que uma
pessoa de espírito prático, como é o
meu caso, talvez aconselhasse um
ajuste: se o vaso está virado para Meca, o recluso que se posicione de lado. Infelizmente, ninguém ouviu as
minhas palavras.
Nem ontem, nem hoje. E, se o caso
dos vasos sanitários ainda provoca
espanto e riso, eu não sei que tipo de
reação os recentes acontecimentos
na Alemanha despertam no auditório. Uma mulher de origem marroquina, 26 anos, dois filhos, pediu ao
tribunal de família de Frankfurt autorização para divórcio rápido. Parece que o marido tinha o hábito desagradável de bater na mulher e ameaçá-la de morte, dois ingredientes
que, dizem, não costumam gerar
bom clima.
A juíza alemã não se comoveu com
a situação e, em momento inspirado, citou o Alcorão para lembrar os
deveres femininos na conjugalidade. De acordo com o versículo 34 da
quarta surata, quando o homem bate com razão, a mulher apanha com
razão. "Se receias que a mulher se
rebele", diz o verso, "ameaça-a, atira-a para a cama e espanca-a".
O caso promete fazer doutrina, sobretudo num país com 82 milhões
de habitantes, onde 5% (mínimo)
são muçulmanos. Promete fazer
doutrina e, já agora, inaugurar um
novo capítulo na modernidade política do Ocidente. De que modernidade falamos? Da modernidade que
Sófocles aflorou em "Antígona" e
que só teria resposta dez séculos depois. Devemos obedecer às leis de
Deus? Ou devemos respeito e lealdade às leis dos homens?
A oposição entre Antígona e
Creonte, que atravessou grande parte da medievalidade cristã transmutada entre a autoridade da Igreja e a
do Estado, só seria ultrapassada no
final da Idade Média com uma separação preciosa entre essas duas esferas de poder distintas: a Deus o que é
de Deus, a César o que é de César.
Se as matérias da consciência são
reguladas pela cidade divina, as matérias mundanas estão sob alçada da
autoridade civil. Exatamente ao
contrário do Islã, onde a sharia, porque universal e indivisível, domina
todos os aspectos da vida pessoal e
comunitária. Com os resultados conhecidos.
Depois dos vasos sanitários, e numa altura em que a sharia vai reconquistando estatuto especial em várias partes da Europa (sobretudo ao
norte, onde os "crimes de honra"
nem sempre são condenados como
homicídio), é sempre reconfortante
saber que a Alemanha também já
deu o seu contributo. Quando o réu é
muçulmano, a Alemanha suspende
a sua Constituição, suspende o seu
código civil, suspende o seu código
penal e pede o Alcorão emprestado.
A Europa, que andou em festa nos
últimos dias com a sua "união", tem
um grande futuro à sua espera.
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