São Paulo, quarta-feira, 28 de março de 2007

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

A Deus o que é de César

A juíza alemã não se comoveu e, em momento inspirado, citou o Alcorão para lembrar os deveres femininos

UMA PERGUNTA, leitores: o que acontece quando os vasos sanitários das prisões inglesas estão virados para Meca? A questão assaltou as consciências britânicas uns meses atrás, e a resposta foi imediata: para evitar ofensas ao Islã, necessário se torna destruir e reconstruir grande parte dos banheiros prisionais de Sua Majestade.
Objetivo nobre: evitar que os reclusos islâmicos insultem o profeta em posição sentada. Claro que uma pessoa de espírito prático, como é o meu caso, talvez aconselhasse um ajuste: se o vaso está virado para Meca, o recluso que se posicione de lado. Infelizmente, ninguém ouviu as minhas palavras.
Nem ontem, nem hoje. E, se o caso dos vasos sanitários ainda provoca espanto e riso, eu não sei que tipo de reação os recentes acontecimentos na Alemanha despertam no auditório. Uma mulher de origem marroquina, 26 anos, dois filhos, pediu ao tribunal de família de Frankfurt autorização para divórcio rápido. Parece que o marido tinha o hábito desagradável de bater na mulher e ameaçá-la de morte, dois ingredientes que, dizem, não costumam gerar bom clima.
A juíza alemã não se comoveu com a situação e, em momento inspirado, citou o Alcorão para lembrar os deveres femininos na conjugalidade. De acordo com o versículo 34 da quarta surata, quando o homem bate com razão, a mulher apanha com razão. "Se receias que a mulher se rebele", diz o verso, "ameaça-a, atira-a para a cama e espanca-a".
O caso promete fazer doutrina, sobretudo num país com 82 milhões de habitantes, onde 5% (mínimo) são muçulmanos. Promete fazer doutrina e, já agora, inaugurar um novo capítulo na modernidade política do Ocidente. De que modernidade falamos? Da modernidade que Sófocles aflorou em "Antígona" e que só teria resposta dez séculos depois. Devemos obedecer às leis de Deus? Ou devemos respeito e lealdade às leis dos homens?
A oposição entre Antígona e Creonte, que atravessou grande parte da medievalidade cristã transmutada entre a autoridade da Igreja e a do Estado, só seria ultrapassada no final da Idade Média com uma separação preciosa entre essas duas esferas de poder distintas: a Deus o que é de Deus, a César o que é de César.
Se as matérias da consciência são reguladas pela cidade divina, as matérias mundanas estão sob alçada da autoridade civil. Exatamente ao contrário do Islã, onde a sharia, porque universal e indivisível, domina todos os aspectos da vida pessoal e comunitária. Com os resultados conhecidos.
Depois dos vasos sanitários, e numa altura em que a sharia vai reconquistando estatuto especial em várias partes da Europa (sobretudo ao norte, onde os "crimes de honra" nem sempre são condenados como homicídio), é sempre reconfortante saber que a Alemanha também já deu o seu contributo. Quando o réu é muçulmano, a Alemanha suspende a sua Constituição, suspende o seu código civil, suspende o seu código penal e pede o Alcorão emprestado. A Europa, que andou em festa nos últimos dias com a sua "união", tem um grande futuro à sua espera.


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