São Paulo, quarta-feira, 28 de março de 2007

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MARCELO COELHO

Borat, o bárbaro

A ironia de "Borat" é só um pretexto para o autor liberar fantasmas, impulsos e terrores

DEVO SER, junto com o irmão retardado do personagem-título, um dos poucos a não ter achado nenhuma graça em "Borat", filme do britânico Sacha Baron Cohen, já há algum tempo em cartaz nos cinemas de São Paulo.
Claro que nessas questões de humor o que conta é o julgamento de cada um, e as reações pessoais de um articulista não vêm muito ao caso.
De qualquer modo, se você ainda não viu o filme, fica o aviso. Basta reparar nas fotos promocionais de "Borat". O famoso maiô verde-limão usado pelo personagem, uma espécie de sunga fio-dental com alças no ombro, talvez seja advertência suficiente para se perceber qual o tipo de recursos utilizado por Sacha Baron Cohen para arrancar risos da platéia.
Sem dúvida, há mais que palhaçada e mau gosto nas aventuras do "glorioso repórter do Cazaquistão" em sua viagem pelos Estados Unidos. A idéia, como se sabe, é mostrar o quanto de preconceito, xenofobia e estupidez se esconde na mentalidade do americano médio, utilizando-se a personagem fictícia de Borat como uma espécie de "reagente", de papel de tornassol político, no contato com cidadãos reais.
Assim, o ingênuo Borat tenta beijar pessoas nas ruas de Nova York; as reações vão da hostilidade ao pânico. Apresentando-se como repórter estrangeiro numa reunião de feministas, ele externaliza os mais insultuosos preconceitos contra as mulheres. Num jantar com gente fina do Sul, Borat finge não saber usar o banheiro e contrata uma prostituta negra para acompanhá-lo na reunião.
Diante dessa série de "pegadinhas" televisivas, as vítimas se comportam como seria de esperar: no princípio não acreditam no que estão vendo e ouvindo, e depois, com graus diversos de violência, expulsam Borat de seu horizonte.
O problema, a meu ver, é que o tiro acaba saindo pela culatra. Os americanos acabam me parecendo menos preconceituosos e intolerantes do que eu imaginava. Se Borat fizesse no Brasil metade do que faz nos Estados Unidos, não conseguiria sair vivo dos primeiros dez minutos de filmagem.
Obviamente, o ator se cuida, e antes que a situação fique insustentável a farsa se interrompe. Mesmo assim, seus atos mais temerários são contidos com um grau de respeito aos direitos humanos e às "diferenças culturais" que vai demorar muito para ser atingido no Brasil.
Um exemplo. Borat vai a um rodeio, para confrontar-se com o tipo mais tradicionalista e xenófobo de americano que possamos conceber. Ele não só é recebido amigavelmente, como também é homenageado no evento, sendo convidado a fazer uma saudação ao público presente.
A saudação é uma obra-prima de ironia e sem dúvida realiza um sonho presente em largas parcelas da opinião pública mundial. Borat faz um elogio pavoroso à política externa de Bush, louvando a morte de mulheres e crianças; o público do rodeio demora para perceber a ironia. Mas se Borat aparecesse num jogo da seleção brasileira e fizesse com o nosso hino nacional o que faz com o dos Estados Unidos, tenho certeza que não acharíamos o filme tão engraçado assim.
Em outras situações, o ator faz o possível para criar o máximo de estragos nos lugares que visita. Uma loja de antigüidades, um quarto de hotel, servem de cenário para tolos pastelões. Novamente, as reações dos americanos são bem mais civilizadas do que seria de esperar. Por vezes, os disparates do ator terminam sem provocar reação nenhuma; e é visível seu empenho em levar a cena a extremos que terminam, no fundo, enfraquecendo seu argumento.
Falei em "tiro pela culatra" alguns parágrafos acima, e fiquei na dúvida se a expressão não era muito clichê. Resolvi deixar assim, porque a insistência de Baron Cohen em traseiros, excrementos e sexo anal torna adequada, com sua etimologia sugestiva, a expressão. Menos do que revelar a homofobia, o machismo, o anti-semitismo e a estupidez presentes na mentalidade americana sob o frágil verniz das boas maneiras e do "politicamente correto", é o próprio autor do filme, e não os Estados Unidos, quem se mostra em toda sua grosseria e simploriedade.
A ironia de "Borat" é apenas um pretexto, muitas vezes mal urdido, para o autor liberar seus próprios fantasmas, impulsos e terrores. O riso que o filme provoca talvez tenha esse mesmo efeito; é catártico, não crítico. "Borat" faz parte, acho, do mesmo mundo que tenta denunciar.


coelhofsp@uol.com.br

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