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MARCELO COELHO
Borat, o bárbaro
A ironia de "Borat" é só
um pretexto para o
autor liberar fantasmas,
impulsos e terrores
DEVO SER, junto com o irmão
retardado do personagem-título, um dos poucos a não ter
achado nenhuma graça em "Borat",
filme do britânico Sacha Baron Cohen, já há algum tempo em cartaz
nos cinemas de São Paulo.
Claro que nessas questões de humor o que conta é o julgamento de
cada um, e as reações pessoais de um
articulista não vêm muito ao caso.
De qualquer modo, se você ainda
não viu o filme, fica o aviso. Basta reparar nas fotos promocionais de
"Borat". O famoso maiô verde-limão
usado pelo personagem, uma espécie de sunga fio-dental com alças no
ombro, talvez seja advertência suficiente para se perceber qual o tipo
de recursos utilizado por Sacha Baron Cohen para arrancar risos da
platéia.
Sem dúvida, há mais que palhaçada e mau gosto nas aventuras do
"glorioso repórter do Cazaquistão"
em sua viagem pelos Estados Unidos. A idéia, como se sabe, é mostrar
o quanto de preconceito, xenofobia
e estupidez se esconde na mentalidade do americano médio, utilizando-se a personagem fictícia de Borat
como uma espécie de "reagente", de
papel de tornassol político, no contato com cidadãos reais.
Assim, o ingênuo Borat tenta beijar pessoas nas ruas de Nova York; as
reações vão da hostilidade ao pânico. Apresentando-se como repórter
estrangeiro numa reunião de feministas, ele externaliza os mais insultuosos preconceitos contra as mulheres. Num jantar com gente fina
do Sul, Borat finge não saber usar o
banheiro e contrata uma prostituta
negra para acompanhá-lo na reunião.
Diante dessa série de "pegadinhas" televisivas, as vítimas se comportam como seria de esperar: no
princípio não acreditam no que estão vendo e ouvindo, e depois, com
graus diversos de violência, expulsam Borat de seu horizonte.
O problema, a meu ver, é que o tiro
acaba saindo pela culatra. Os americanos acabam me parecendo menos
preconceituosos e intolerantes do
que eu imaginava. Se Borat fizesse
no Brasil metade do que faz nos Estados Unidos, não conseguiria sair
vivo dos primeiros dez minutos de
filmagem.
Obviamente, o ator se cuida, e antes que a situação fique insustentável a farsa se interrompe. Mesmo assim, seus atos mais temerários são
contidos com um grau de respeito
aos direitos humanos e às "diferenças culturais" que vai demorar muito para ser atingido no Brasil.
Um exemplo. Borat vai a um rodeio, para confrontar-se com o tipo
mais tradicionalista e xenófobo de
americano que possamos conceber.
Ele não só é recebido amigavelmente, como também é homenageado
no evento, sendo convidado a fazer
uma saudação ao público presente.
A saudação é uma obra-prima de
ironia e sem dúvida realiza um sonho presente em largas parcelas da
opinião pública mundial. Borat faz
um elogio pavoroso à política externa de Bush, louvando a morte de
mulheres e crianças; o público do rodeio demora para perceber a ironia.
Mas se Borat aparecesse num jogo
da seleção brasileira e fizesse com o
nosso hino nacional o que faz com o
dos Estados Unidos, tenho certeza
que não acharíamos o filme tão engraçado assim.
Em outras situações, o ator faz o
possível para criar o máximo de estragos nos lugares que visita. Uma
loja de antigüidades, um quarto de
hotel, servem de cenário para tolos
pastelões. Novamente, as reações
dos americanos são bem mais civilizadas do que seria de esperar. Por
vezes, os disparates do ator terminam sem provocar reação nenhuma; e é visível seu empenho em levar
a cena a extremos que terminam, no
fundo, enfraquecendo seu argumento.
Falei em "tiro pela culatra" alguns
parágrafos acima, e fiquei na dúvida
se a expressão não era muito clichê.
Resolvi deixar assim, porque a insistência de Baron Cohen em traseiros,
excrementos e sexo anal torna adequada, com sua etimologia sugestiva, a expressão. Menos do que revelar a homofobia, o machismo, o anti-semitismo e a estupidez presentes
na mentalidade americana sob o frágil verniz das boas maneiras e do
"politicamente correto", é o próprio
autor do filme, e não os Estados Unidos, quem se mostra em toda sua
grosseria e simploriedade.
A ironia de "Borat" é apenas um
pretexto, muitas vezes mal urdido,
para o autor liberar seus próprios
fantasmas, impulsos e terrores. O riso que o filme provoca talvez tenha
esse mesmo efeito; é catártico, não
crítico. "Borat" faz parte, acho, do
mesmo mundo que tenta denunciar.
coelhofsp@uol.com.br
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