São Paulo, sábado, 28 de março de 2009

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A vida desde o fim

A obra impressiona mais pela beleza e astúcia de peças isoladas do que pelo efeito conjunto do quebra-cabeça que instiga a montar

EDUARDO GIANNETTI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Farsa e profundidade. "Leite Derramado" é o relato em primeira pessoa de um duplo malogro: a decadência da família Assumpção, egressa do patronato político brasileiro, e o colapso de um casamento carioca, provocado pelo misterioso sumiço da jovem esposa do narrador.
Obra de alta carpintaria literária, o quarto romance de Chico Buarque impressiona mais pela beleza e astúcia de peças isoladas -soluções felizes de linguagem espalhadas como dádivas pelo texto- do que pelo efeito conjunto do quebra-cabeça que ele nos instiga a montar. A leitura encanta e arrebata, mas o todo é menor que a soma das partes. O romance se desmancha em sopro assim que termina.
Eulálio Montenegro d'Assumpção, o narrador, tem mais de cem anos, está à beira da morte e conta sua história, entremeada de delírios, incongruências e devaneios, a partir de um leito de hospital. Ele é um elo -frágil ponto de inflexão- numa vasta linhagem de Eulálios que medrou no Brasil desde a vinda da corte portuguesa.
O seu bisavô paterno, feito barão por dom Pedro 1º, traficava escravos moçambicanos; o seu bisneto, nascido em hospital do Exército onde os pais comunistas estavam presos pela ditadura, morre assassinado num motel; o derradeiro Eulálio, tataraneto do narrador, é traficante de drogas para a elite carioca. Do barão negreiro ao baronato do pó, o ciclo se fecha. É "o fim da linha dos Assumpção".
Duas preocupações soberanas governam a autobiografia ficcional de Eulálio: o furor de se distinguir da ralé com que ele cada vez mais se confunde e o amor possessivo por Matilde, a jovem "escurinha", filha adotiva de um ex-correligionário de seu pai senador, com quem se casa à revelia da mãe viúva. O valor supremo de Eulálio, um oportunista ingênuo cercado de aproveitadores espertos por todos os lados, é se dar bem a qualquer preço. Mas os resultados trucidam as intenções.
Paixões egoístas, deformações egocêntricas. A insegurança social, insuflada pelo declínio da família, leva o narrador a perder-se em delírios de grandeza: quanto mais infla o seu prestígio, mais ele murcha. O ciúme corrosivo da esposa desemboca no grande mistério da trama -mote de ótimos momentos de suspense- que é o sumiço de Matilde, sem bilhete e sem mala, ainda lactante, poucos meses depois do nascimento da primeira filha.
Qual o motivo da fuga? "Doença de pobre" (tuberculose) ou "doença da luxúria" (adultério)? As hipóteses proliferam como gatas de rua. Claramente, ela era mais mulher do que ele era homem. As pegadas de "Dom Casmurro" surgem a cada passo do livro; o parentesco Eulálio-Bentinho e Matilde-Capitu seguramente dará ensejo a rica produção acadêmica.

Labirinto de espelhos
O que é real? Na construção da trama, Chico Buarque impele o leitor a um exercício finamente calculado de buscar pontos de apoio e informações confiáveis em meio ao labirinto de espelhos que são as memórias movediças do narrador. O toque de mestre está na arte sutil que faz do relato crepuscular de Eulálio uma confissão involuntária e poderosa o bastante para dar ao leitor a sensação de que sabe mais sobre o personagem e seu mundo que o próprio autor. Os achados estilísticos da obra são um banquete de mil talheres.
E, não obstante, algo se frustra. A primeira pessoa confessional é um gênero exigente. Os delírios da decrepitude de Eulálio são fiéis à vida, mas a situação narrativa do autor decrépito não convence. Não se sabe por que ele conta sua história e, menos ainda, como o relato se fixa e vira texto. Ora ele dita à enfermeira-taquígrafa, ora fala com o teto; ora sonha em voz alta, ora conversa com mortos; ora dirige-se à filha, ora ao leitor. A trama do ato de contar é tecnicamente débil -não para em pé.
Simplismos esporádicos à parte, "Leite Derramado" cutuca e devassa com olhar cortante as mazelas da vida brasileira: a desigualdade obscena; a promiscuidade público-privada; a subserviência colonizada; o preconceito velado pela cordialidade. O que falta, porém, é a construção de ao menos um personagem com o qual se possa ter um vínculo de empatia. Os Eulálios senhoriais são calhordas; os Balbinos da estirpe servil, quando aparecem em cena, mais parecem boçais, e Matilde não tem vida interior. A sociologia festeja, mas a filosofia rasteja.
Se o novo romance de Chico Buarque fosse uma partida de futebol, seria um daqueles jogos repletos de lances memoráveis, fintas deslumbrantes, toques de gênio, mas em que o conjunto do time e o desenrolar da peleja deixam a desejar. Falta armação de jogo. O autor de "Deus lhe Pague" e "Futuros Amantes" foi mais longe.


Avaliação: bom

EDUARDO GIANNETTI, 52, é economista, cientista social e professor do Ibmec-SP.



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