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A vida desde o fim
A obra impressiona mais pela beleza e astúcia de peças isoladas do que pelo efeito conjunto do quebra-cabeça que instiga a montar
EDUARDO GIANNETTI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Farsa e profundidade.
"Leite Derramado" é o
relato em primeira pessoa de um duplo malogro: a decadência da família Assumpção, egressa do patronato político brasileiro, e o colapso de
um casamento carioca, provocado pelo misterioso sumiço da
jovem esposa do narrador.
Obra de alta carpintaria literária, o quarto romance de Chico Buarque impressiona mais
pela beleza e astúcia de peças
isoladas -soluções felizes de
linguagem espalhadas como
dádivas pelo texto- do que pelo efeito conjunto do quebra-cabeça que ele nos instiga a
montar. A leitura encanta e arrebata, mas o todo é menor que
a soma das partes. O romance
se desmancha em sopro assim
que termina.
Eulálio Montenegro d'Assumpção, o narrador, tem mais
de cem anos, está à beira da
morte e conta sua história, entremeada de delírios, incongruências e devaneios, a partir
de um leito de hospital. Ele é
um elo -frágil ponto de inflexão- numa vasta linhagem
de Eulálios que medrou no
Brasil desde a vinda da corte
portuguesa.
O seu bisavô paterno, feito
barão por dom Pedro 1º, traficava escravos moçambicanos;
o seu bisneto, nascido em hospital do Exército onde os pais
comunistas estavam presos
pela ditadura, morre assassinado num motel; o derradeiro Eulálio, tataraneto do narrador, é
traficante de drogas para a
elite carioca. Do barão negreiro
ao baronato do pó, o ciclo se
fecha. É "o fim da linha dos
Assumpção".
Duas preocupações soberanas governam a autobiografia
ficcional de Eulálio: o furor de
se distinguir da ralé com que
ele cada vez mais se confunde e
o amor possessivo por Matilde,
a jovem "escurinha", filha adotiva de um ex-correligionário
de seu pai senador, com quem
se casa à revelia da mãe viúva. O
valor supremo de Eulálio, um
oportunista ingênuo cercado
de aproveitadores espertos por
todos os lados, é se dar bem a
qualquer preço. Mas os resultados trucidam as intenções.
Paixões egoístas, deformações egocêntricas. A insegurança social, insuflada pelo declínio da família, leva o narrador a
perder-se em delírios de grandeza: quanto mais infla o seu
prestígio, mais ele murcha. O
ciúme corrosivo da esposa desemboca no grande mistério da
trama -mote de ótimos momentos de suspense- que é o
sumiço de Matilde, sem bilhete
e sem mala, ainda lactante,
poucos meses depois do nascimento da primeira filha.
Qual o motivo da fuga?
"Doença de pobre" (tuberculose) ou "doença da luxúria"
(adultério)? As hipóteses proliferam como gatas de rua. Claramente, ela era mais mulher do
que ele era homem. As pegadas
de "Dom Casmurro" surgem a
cada passo do livro; o parentesco Eulálio-Bentinho e Matilde-Capitu seguramente dará ensejo a rica produção acadêmica.
Labirinto de espelhos
O que é real? Na construção
da trama, Chico Buarque impele o leitor a um exercício finamente calculado de buscar
pontos de apoio e informações
confiáveis em meio ao labirinto
de espelhos que são as memórias movediças do narrador. O
toque de mestre está na arte sutil que faz do relato crepuscular
de Eulálio uma confissão involuntária e poderosa o bastante
para dar ao leitor a sensação
de que sabe mais sobre o personagem e seu mundo que o próprio autor. Os achados estilísticos da obra são um banquete
de mil talheres.
E, não obstante, algo se frustra. A primeira pessoa confessional é um gênero exigente. Os
delírios da decrepitude de Eulálio são fiéis à vida, mas a situação narrativa do autor decrépito não convence. Não se sabe
por que ele conta sua história
e, menos ainda, como o relato
se fixa e vira texto. Ora ele dita
à enfermeira-taquígrafa, ora fala com o teto; ora sonha em voz
alta, ora conversa com mortos;
ora dirige-se à filha, ora ao leitor. A trama do ato de contar
é tecnicamente débil -não para em pé.
Simplismos esporádicos à
parte, "Leite Derramado" cutuca e devassa com olhar cortante
as mazelas da vida brasileira: a
desigualdade obscena; a promiscuidade público-privada; a
subserviência colonizada; o
preconceito velado pela cordialidade. O que falta, porém, é a
construção de ao menos um
personagem com o qual se possa ter um vínculo de empatia.
Os Eulálios senhoriais são calhordas; os Balbinos da estirpe
servil, quando aparecem em cena, mais parecem boçais, e Matilde não tem vida interior. A
sociologia festeja, mas a filosofia rasteja.
Se o novo romance de Chico
Buarque fosse uma partida de
futebol, seria um daqueles jogos repletos de lances memoráveis, fintas deslumbrantes, toques de gênio, mas em que o
conjunto do time e o desenrolar da peleja deixam a desejar.
Falta armação de jogo. O autor
de "Deus lhe Pague" e "Futuros
Amantes" foi mais longe.
Avaliação: bom
EDUARDO GIANNETTI, 52, é economista, cientista social e professor do Ibmec-SP.
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