São Paulo, sábado, 28 de março de 2009

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LIVROS

Crítica/"Tratados da Vida Moderna" e "Eugénie Grandet"

Textos revelam fina ironia de Balzac

Reunião de ensaios e romance permitem entender como visão mordaz sobre a sociedade ajudava escritor a criar tipos na ficção

NELSON DE OLIVEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Para o glutão, mulherengo e perdulário Honoré de Balzac (1797-1850), "o homem moderno" era tudo o que havia de mais nobre e abjeto. Daí a sua obsessão pelo comportamento dessa espécie tão excêntrica, cujo DNA também era o seu. Balzac analisava os outros como uma forma de autoconhecimento.
Os "Tratados da Vida Moderna", recheados de aforismos e axiomas irônicos e mordazes, foram escritos entre 1830 e 1839. Essa saborosa prosa "científica" completa o projeto de Balzac de esmiuçar a vida social francesa oitocentista, concretizado magistralmente na "Comédia Humana".
A coletânea reúne cinco ensaios: "Fisiologia do Vestuário", "Fisiologia Gastronômica", "Tratado da Vida Elegante", "Teoria do Mover-se" e "Tratado dos Excitantes Modernos". Medir, pesar, descrever e classificar: esse foi o método empregado compulsivamente pelo ensaísta em seus tratados. A graça dos textos está no rigor matemático típico das ciências exatas aplicado ao comportamento cotidiano, como se o homem fosse só uma máquina desregulada.
A "Fisiologia do Vestuário", por exemplo, ensina que a gravata é o homem, que "é através dela que o homem se revela e se manifesta". Considerados em relação à gravata, os homens dividem-se em três categorias: os relaxados, os ingênuos bem-intencionados e os fortes, que sentem e entendem a gravata.
A cada modelo de gravata corresponde um tipo de homem, valendo essa regra para cada modelo de paletó. Divertidíssimo. Esse é o sabor de sua análise sobre o apetite (concentrando-se no comilão e no glutão), a vida elegante (definindo o homem que trabalha, o que pensa e o que nada faz), o movimento (Balzac ficava nos bulevares espionando os passantes) e os excitantes (açúcar, chá, café, tabaco e álcool), onde se lê: "Todo excesso baseia-se em um prazer que o homem deseja repetir para além das leis comuns promulgadas pela natureza".
Em resumo, a modernidade é excesso. É a repetição compulsiva de certos prazeres impossíveis nos séculos anteriores. Entre eles, o prazer da catalogação e da classificação, praticadas pelo próprio ficcionista-antropólogo em suas análises.

Da teoria para a ficção
A Balzac interessavam os vícios e as virtudes do sujeito comum, de carne e osso, que ele entendia como ninguém. Em sua comédia teórica, ao reduzir as pessoas a estereótipos, ele na verdade criava tipos incomuns para a comédia ficcional. Tipos parisienses que podiam ser transportados para a província, tipos provincianos que podiam ser trazidos para a capital.
Em resposta a uma necessidade ficcional, o glutão flagrado em Paris podia aparecer, em determinado conto, em uma cidadezinha do interior. E, em certo romance, o trapaceiro de um canto remoto da província podia surgir morando na rua de Tournon. Balzac era um grande permutador. Lançado em 1833, "Eugénie Grandet" foi o primeiro dos grandes romances de Balzac. O livro, considerado "água com açúcar" e "para moças", foi um sucesso entre o grande público.
E entre muitos críticos, que conseguiram ver nele a ponta de uma revolução literária. Para um autor não tão jovem, que vivia fugindo dos credores, o triunfo chegava na hora certa. A vidinha sem graça de Eugénie e sua família, num cenário insosso e modorrento, bem longe de Paris, encanta pelo forte desencanto dos acontecimentos. Melhor dizendo, dos não acontecimentos.
Diferente do que se fazia na época, nesse romance sobre a ganância e a avareza nada de romanesco acontece. "Nada de grandes reviravoltas, traições, rompantes de loucura, suicídios ou êxtases", escreve Pierre Citron na apresentação.
A forma narrativa é tão nova que a história do amor malsucedido entre a provinciana Eugénie e o primo parisiense pode ser considerada o primeiro dos antirromances de Balzac.

NELSON DE OLIVEIRA é escritor, autor de "Ódio Sustenido" (Língua Geral), entre outros


TRATADOS DA VIDA MODERNA
Autor: Honoré de Balzac
Tradução: Leila de Aguiar Costa
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 37 (240 págs.)
Avaliação: bom

EUGÉNIE GRANDET
Autor: Honoré de Balzac
Tradução: Marina Appenzeller
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 39 (264 págs.)
Avaliação: ótimo



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