|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LIVROS
Crítica/"Tratados da Vida Moderna" e "Eugénie Grandet"
Textos revelam fina ironia de Balzac
Reunião de ensaios e romance permitem entender como visão mordaz sobre a sociedade ajudava escritor a criar tipos na ficção
NELSON DE OLIVEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Para o glutão, mulherengo e perdulário Honoré
de Balzac (1797-1850),
"o homem moderno" era tudo o
que havia de mais nobre e abjeto. Daí a sua obsessão pelo comportamento dessa espécie tão
excêntrica, cujo DNA também
era o seu. Balzac analisava os
outros como uma forma de autoconhecimento.
Os "Tratados da Vida Moderna", recheados de aforismos e
axiomas irônicos e mordazes,
foram escritos entre 1830 e
1839. Essa saborosa prosa
"científica" completa o projeto
de Balzac de esmiuçar a vida social francesa oitocentista, concretizado magistralmente na
"Comédia Humana".
A coletânea reúne cinco ensaios: "Fisiologia do Vestuário", "Fisiologia Gastronômica", "Tratado da Vida Elegante", "Teoria do Mover-se" e
"Tratado dos Excitantes Modernos". Medir, pesar, descrever e classificar: esse foi o método empregado compulsivamente pelo ensaísta em seus
tratados. A graça dos textos está no rigor matemático típico
das ciências exatas aplicado ao
comportamento cotidiano, como se o homem fosse só uma
máquina desregulada.
A "Fisiologia do Vestuário",
por exemplo, ensina que a gravata é o homem, que "é através
dela que o homem se revela e se
manifesta". Considerados em
relação à gravata, os homens dividem-se em três categorias: os
relaxados, os ingênuos bem-intencionados e os fortes, que
sentem e entendem a gravata.
A
cada modelo de gravata corresponde um tipo de homem, valendo essa regra para cada modelo de paletó. Divertidíssimo.
Esse é o sabor de sua análise
sobre o apetite (concentrando-se no comilão e no glutão), a vida elegante (definindo o homem que trabalha, o que pensa
e o que nada faz), o movimento
(Balzac ficava nos bulevares espionando os passantes) e os excitantes (açúcar, chá, café, tabaco e álcool), onde se lê: "Todo
excesso baseia-se em um prazer que o homem deseja repetir
para além das leis comuns promulgadas pela natureza".
Em resumo, a modernidade é
excesso. É a repetição compulsiva de certos prazeres impossíveis nos séculos anteriores.
Entre eles, o prazer da catalogação e da classificação, praticadas pelo próprio ficcionista-antropólogo em suas análises.
Da teoria para a ficção
A Balzac interessavam os vícios e as virtudes do sujeito comum, de carne e osso, que ele
entendia como ninguém. Em
sua comédia teórica, ao reduzir
as pessoas a estereótipos, ele na
verdade criava tipos incomuns
para a comédia ficcional.
Tipos parisienses que podiam ser transportados para a
província, tipos provincianos
que podiam ser trazidos para a
capital.
Em resposta a uma necessidade ficcional, o glutão flagrado em Paris podia aparecer,
em determinado conto, em
uma cidadezinha do interior. E,
em certo romance, o trapaceiro
de um canto remoto da província podia surgir morando na
rua de Tournon. Balzac era um
grande permutador.
Lançado em 1833, "Eugénie
Grandet" foi o primeiro dos
grandes romances de Balzac. O
livro, considerado "água com
açúcar" e "para moças", foi um
sucesso entre o grande público.
E entre muitos críticos, que
conseguiram ver nele a ponta
de uma revolução literária. Para um autor não tão jovem, que
vivia fugindo dos credores, o
triunfo chegava na hora certa.
A vidinha sem graça de Eugénie e sua família, num cenário
insosso e modorrento, bem
longe de Paris, encanta pelo
forte desencanto dos acontecimentos. Melhor dizendo, dos
não acontecimentos.
Diferente do que se fazia na
época, nesse romance sobre a
ganância e a avareza nada de
romanesco acontece. "Nada de
grandes reviravoltas, traições,
rompantes de loucura, suicídios ou êxtases", escreve Pierre
Citron na apresentação.
A forma narrativa é tão nova
que a história do amor malsucedido entre a provinciana Eugénie e o primo parisiense pode
ser considerada o primeiro dos
antirromances de Balzac.
NELSON DE OLIVEIRA é escritor, autor de "Ódio Sustenido" (Língua Geral), entre outros
TRATADOS DA VIDA MODERNA
Autor: Honoré de Balzac
Tradução: Leila de Aguiar Costa
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 37 (240 págs.)
Avaliação: bom
EUGÉNIE GRANDET
Autor: Honoré de Balzac
Tradução: Marina Appenzeller
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 39 (264 págs.)
Avaliação: ótimo
Texto Anterior: Crítica/teatro/Fringe: Mostra paralela em Curitiba chega a 290 peças, mas perde em qualidade Próximo Texto: Livros/Crítica/"Ética, Jornalismo e Nova Mídia - Uma Moral Provisória": Tese sobre ética faz o elogio da controvérsia Índice
|