São Paulo, sábado, 28 de março de 1998

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Serra, França e Bahia

ALBERTO DINES
Colunista da Folha

A indicação do senador José Serra para o cargo de Ministro da Saúde provocou uma das mais pitorescas situações da comédia política nacional. Depois de tanta tensão, afinal, uma oportunidade para descontrair. Cervantes não imaginaria uma situação mais picaresca na Barataria onde Sancho Pança é governador.
A indignação anti-Serra não veio das oposições, onde o senador paulista transita com desembaraço. O indicado não foi pichado por incompetência, mas justamente porque é capaz de gerenciar uma área onde os interesses políticos e eleitoreiros sempre atrapalharam as decisões técnicas.
O furor veio desta esdrúxula argamassa que atende pelo nome de "base governista". Origina-se, sobretudo, nos rincões outrora famosos pela qualidade das raposas que produzia. "Rebelião no PFL" foi como a excitada crônica política designou o movimento de alguns pefelistas contra José Serra, seguindo a compulsão de palavras contundentes hoje vigente no jornalismo.
Os revoltados, empunhando canhestramente as bandeiras sociais, não estão preocupados com um eventual insucesso do senador-ministro num ano eleitoral. Ao contrário, morrem de medo de que dê certo. Portanto, não são as esquerdas que apostam no "quanto pior, melhor", mas é esta centro-direita que exibe sua assanhada doutrina de poder.
O PFL, pelo que dá a entender com esta bravata, não está preocupado com as eleições presidenciais de 1998, mas com as próximas, quando pretende apresentar candidato próprio ao Planalto na pessoa, ao que tudo indica, do filho do senador Antônio Carlos Magalhães. Dão como favas contadas sua eleição para o governo da Bahia e, numa arrancada fulminante, sua indicação para suceder aquele que sair vitorioso no pleito presidencial de 1998. Serra, bem sucedido na pasta da Saúde, pode ser um obstáculo ao projeto.
É certo que o xadrez político -como os jogos de guerra no tabuleiro- exige previsão e antecipação. Mas estas escancaradas manobras prospectivas em função de 2002 demonstram, no mínimo, um certo descaso ou mesmo desprezo com a conjuntura e o calendário eleitoral imediato. O eleitorado não perdoa aqueles que ignoram as surpresas que é capaz de reservar.
Herdeiros do mitológico PSD, donos do pragmatismo e da "realpolitik" (nada a ver com a política do Real) este surto ressentido do PFL não lhe fica bem. Sobretudo porque passa ao largo de alguns dados novos no cenário político internacional.
Se as eleições de Tony Blair e Leonel Jospin (em seguida à recondução de Clinton) representaram a "Onda Rosa", espécie de renascimento social-democrata, o pleito cantonal francês desvenda a extensão de um fenômeno gravíssimo: a capacidade da extrema-direita francesa de magnetizar a chamada "direita clássica", republicana e democrática, para chegar ao poder legitimada pelo voto.
Jean Marie Le Pen foi derrotado no segundo turno do último domingo na disputa pela presidência da província Provença-Alpes-Côte d'Azur. Mas a Frente Nacional, xenófoba, isolacionista e anti-semita, teve ganhos quantitativos substanciais. E foi brindada com um trunfo qualitativo: os neofascistas já não são um bando de marginais ressentidos. Conseguiram fascinar a burguesia conservadora. Ganham respeitabilidade. Convertem-se na única alternativa para reconduzir a França à "grandeur" passada. Exatamente como aconteceu na Alemanha no início dos anos 30.
Um país rachado ao meio (como aconteceu no últimos anos do século passado durante o Caso Dreyfus), numa Europa quase federada, tem um efeito multiplicador extremamente perigoso. As recentes revelações na Espanha sobre o complô da mídia, ligada ao direitista PP para desacreditar o governo do socialista Felipe Gonzalez, dão uma idéia do poder desestabilizador daqueles que hoje envergam terno e gravata em cima das velhas camisas negras ou pardas.
Curiosamente, o nosso PFL anda de namoricos com o PP espanhol e português, assim como a velha Arena dos tempos da ditadura flertava com o mexicano PRI. A aproximação do PFL paulista com o PPB, geneticamente direitista, confere aos malufistas a mesma aura de credibilidade que os neofascistas franceses ganharam agora com algumas alianças conservadoras.
É preciso não esquecer que a vitória de Tancredo Neves nas eleições indiretas de 1984 deveu-se em grande parte ao racha na Arena, comandado por Antônio Carlos Magalhães, inconformado com a canditatura Maluf. Agora, diante da mútua fascinação exibida pelos antigos desafetos, recompõe-se o quadro ideológico do antigo regime.
A excitada futurologia dos rebelados do PFL a partir da indicação de José Serra projeta um cenário preocupante. Aciona uma polarização ideológica teoricamente benéfica, diante da nossa inconsistência partidária, mas extremamente arriscada quando avaliamos a imaturidade da nossa democracia.
A extensão e a profundidade dos problemas nacionais pede um jogo de frentes amplas e pluralistas -- tal como propõe o PPS de Roberto Freire e que a incontinência verbal de Ciro Gomes compromete diariamente. A radicalização social a que ora assistimos, espontânea ou artificial, não deve somar-se à exacerbação ideológica promovida pelos xiitas do pefelismo. São ingredientes de ruptura.
O jogo político é também um jogo de poder, ninguém pode ignorar esta realidade. Mas quando o jogo de poder sobrepõe-se ao jogo político, a realidade passa a ser outra. Nessas circunstâncias, Cervantes fica de lado.



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