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Serra, França e Bahia
ALBERTO DINES
Colunista da Folha
A indicação do senador José
Serra para o cargo de Ministro
da Saúde provocou uma das
mais pitorescas situações da
comédia política nacional. Depois de tanta tensão, afinal,
uma oportunidade para descontrair. Cervantes não imaginaria uma situação mais picaresca na Barataria onde Sancho Pança é governador.
A indignação anti-Serra não
veio das oposições, onde o senador paulista transita com
desembaraço. O indicado não
foi pichado por incompetência,
mas justamente porque é capaz de gerenciar uma área onde os interesses políticos e eleitoreiros sempre atrapalharam
as decisões técnicas.
O furor veio desta esdrúxula
argamassa que atende pelo nome de "base governista". Origina-se, sobretudo, nos rincões
outrora famosos pela qualidade das raposas que produzia.
"Rebelião no PFL" foi como a
excitada crônica política designou o movimento de alguns
pefelistas contra José Serra, seguindo a compulsão de palavras contundentes hoje vigente
no jornalismo.
Os revoltados, empunhando
canhestramente as bandeiras
sociais, não estão preocupados
com um eventual insucesso do
senador-ministro num ano
eleitoral. Ao contrário, morrem de medo de que dê certo.
Portanto, não são as esquerdas
que apostam no "quanto pior,
melhor", mas é esta centro-direita que exibe sua assanhada
doutrina de poder.
O PFL, pelo que dá a entender com esta bravata, não está
preocupado com as eleições
presidenciais de 1998, mas com
as próximas, quando pretende
apresentar candidato próprio
ao Planalto na pessoa, ao que
tudo indica, do filho do senador Antônio Carlos Magalhães. Dão como favas contadas sua eleição para o governo
da Bahia e, numa arrancada
fulminante, sua indicação para suceder aquele que sair vitorioso no pleito presidencial de
1998. Serra, bem sucedido na
pasta da Saúde, pode ser um
obstáculo ao projeto.
É certo que o xadrez político
-como os jogos de guerra no
tabuleiro- exige previsão e
antecipação. Mas estas escancaradas manobras prospectivas em função de 2002 demonstram, no mínimo, um
certo descaso ou mesmo desprezo com a conjuntura e o calendário eleitoral imediato. O
eleitorado não perdoa aqueles
que ignoram as surpresas que é
capaz de reservar.
Herdeiros do mitológico
PSD, donos do pragmatismo e
da "realpolitik" (nada a ver
com a política do Real) este
surto ressentido do PFL não
lhe fica bem. Sobretudo porque
passa ao largo de alguns dados
novos no cenário político internacional.
Se as eleições de Tony Blair e
Leonel Jospin (em seguida à
recondução de Clinton) representaram a "Onda Rosa", espécie de renascimento social-democrata, o pleito cantonal francês desvenda a extensão de um fenômeno gravíssimo: a capacidade da extrema-direita francesa de magnetizar a chamada "direita clássica", republicana e democrática, para chegar ao poder
legitimada pelo voto.
Jean Marie Le Pen foi derrotado no segundo turno do último domingo na disputa pela
presidência da província Provença-Alpes-Côte d'Azur. Mas
a Frente Nacional, xenófoba,
isolacionista e anti-semita, teve ganhos quantitativos substanciais. E foi brindada com
um trunfo qualitativo: os neofascistas já não são um bando
de marginais ressentidos. Conseguiram fascinar a burguesia
conservadora. Ganham respeitabilidade. Convertem-se na
única alternativa para reconduzir a França à "grandeur"
passada. Exatamente como
aconteceu na Alemanha no
início dos anos 30.
Um país rachado ao meio
(como aconteceu no últimos
anos do século passado durante o Caso Dreyfus), numa Europa quase federada, tem um
efeito multiplicador extremamente perigoso. As recentes revelações na Espanha sobre o
complô da mídia, ligada ao direitista PP para desacreditar o
governo do socialista Felipe
Gonzalez, dão uma idéia do
poder desestabilizador daqueles que hoje envergam terno e
gravata em cima das velhas
camisas negras ou pardas.
Curiosamente, o nosso PFL
anda de namoricos com o PP
espanhol e português, assim
como a velha Arena dos tempos da ditadura flertava com o
mexicano PRI. A aproximação
do PFL paulista com o PPB, geneticamente direitista, confere
aos malufistas a mesma aura
de credibilidade que os neofascistas franceses ganharam
agora com algumas alianças
conservadoras.
É preciso não esquecer que a
vitória de Tancredo Neves nas
eleições indiretas de 1984 deveu-se em grande parte ao racha na Arena, comandado por
Antônio Carlos Magalhães, inconformado com a canditatura Maluf. Agora, diante da
mútua fascinação exibida pelos antigos desafetos, recompõe-se o quadro ideológico do
antigo regime.
A excitada futurologia dos
rebelados do PFL a partir da
indicação de José Serra projeta
um cenário preocupante. Aciona uma polarização ideológica
teoricamente benéfica, diante
da nossa inconsistência partidária, mas extremamente arriscada quando avaliamos a
imaturidade da nossa democracia.
A extensão e a profundidade
dos problemas nacionais pede
um jogo de frentes amplas e
pluralistas -- tal como propõe o
PPS de Roberto Freire e que a
incontinência verbal de Ciro
Gomes compromete diariamente. A radicalização social
a que ora assistimos, espontânea ou artificial, não deve somar-se à exacerbação ideológica promovida pelos xiitas do
pefelismo. São ingredientes de
ruptura.
O jogo político é também um
jogo de poder, ninguém pode
ignorar esta realidade. Mas
quando o jogo de poder sobrepõe-se ao jogo político, a realidade passa a ser outra. Nessas
circunstâncias, Cervantes fica
de lado.
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