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NELSON ASCHER
Poesia é o que se ganha na tradução
Traduzir poesia é considerado impossível. Como refazer o equilíbrio miraculoso de um soneto de Dante em inglês, a sucessão elegantemente cadenciada
das oitavas reais de Camões em
francês, a grandiloquência rebuscada de um monólogo shakespeariano em espanhol ou a simplicidade enganadora dos versos de
Púchkin em português ?
E aqui ainda estamos não apenas dentro dos limites da mesma
família linguística, a indo-européia, como também no âmbito da
mesma cultura ocidental. No interior desses dois círculos quase
coincidentes (se deixarmos de lado a metade oriental da família),
as línguas se influenciaram mutuamente, intercambiando palavras, sons, elementos gramaticais,
e tanto as convenções como as
tradições literárias são mais ou
menos comuns há milênios.
O amigo de um amigo (são sempre assim essas histórias) teve de
fugir do Brasil durante a ditadura por estar ligado a algum grupo
clandestino de esquerda e acabou
parando na Polônia. Quem já ouviu as nobres cadências da língua
de Czeslaw Milosz (TCHÊS-uav
MÍ-uoch) sabe que esta se compõe
de um emaranhado impossível de
consoantes intercaladas às vezes
por sons como "nhem" ou
"nhom". Nem os outros eslavos
acham fácil sua fonética, e os russos, em especial, recomendam a
quem deseje pronunciá-la corretamente que o faça com uma batata quente na boca.
Bom, quando se deu conta de
que sua temporada polonesa se
prolongaria, o amigo do amigo
resolveu aprender a falar com os
nativos. Enquanto ele e seus colegas do curso de polonês para estrangeiros ainda praticavam o
"bom dia, senhora, meu nome é",
o único aluno não-ocidental, um
chinês que também começara do
zero, já se mostrava capaz de vender enciclopédias em Varsóvia.
Indagado sobre seu talento superlativo, o chinês meio que se desculpou modestamente: "É que eu
já falava inglês e, para mim, todas
essas línguas indo-européias são
iguais". De fato, quando é dia em
Beijing, ainda é noite na Europa,
onde todo gato, "cat", "chat",
"katz", "kot" é pardo.
Se as dificuldades tradutórias
parecem intransponíveis no seio
de uma família incestuosa, ou seja, se é complicado converter um
soneto tcheco em um soneto holandês, quão mais impossível não
deve ser o transplante de um
"kavya", uma elegia "shih" ou
um "tanka" (composições líricas
breves) escritos em sânscrito (sim,
indo-europeu, mas da metade
oriental) por Amaru, em chinês
por Tu Fu ou em japonês por Saiguio para uma língua ocidental?
Por outro lado, se a distância
geográfica acrescenta problemas,
a temporal os multiplica. Escrever
um soneto no século 13, quando
esta era um forma nova, de vanguarda mesmo, tinha um significado cultural distinto daquele
que tem fazê-lo hoje em dia,
quando muitos veriam nisso um
gesto retrógrado e esteticamente
reacionário.
E, no entanto, traduz-se. Cada
vez mais. Como e por quê?
O porquê tem a ver com o fato
de que, desde pelo menos o princípio da modernidade, quase ninguém considera sua cultura local
ou nacional como algo completo,
auto-suficiente. O afã de viajar,
conhecer outros povos e países,
existe igualmente na poesia, com
a vantagem de que esta nos oferece, de resto, um túnel do tempo.
Eis a razão que está na raiz,
mas não faltam outras. Vários
povos europeus no século 19, além
de amargarem o domínio de suas
terras por estrangeiros, ainda tinham de se calar quando esses se
referiam à própria língua e literatura como, de algum modo, superiores, mais civilizadas. Assim,
tchecos e catalães, húngaros e poloneses resolveram mostrar aos
seus senhores que o que falavam
não eram dialetos de camponeses
analfabetos, mas línguas cultivadas o suficiente para acolher "A
Divina Comédia" e "Macbeth", a
"Ilíada" e a "Eneida".
Quanto ao como, não há um.
Há, isto sim, muitos. Convém,
contudo, pôr de lado duas noções
que distorcem a discussão. Primeiro, traduzir poesia não é uma
questão de fidelidade, pois, dado
que o tradutor não cometa erros
na compreensão do original, sua
tarefa consiste em elaborar algo
que está entre a equivalência e a
resposta. Um poema traduzido
relaciona-se de um modo que não
é simples com aquele que, por assim dizer, o inspirou, respondendo aos problemas que ele apresenta com os recursos de uma língua
distinta e, geralmente, com convenções de uma outra época.
Em segundo lugar, não pode
haver tradução perfeita, pois
tampouco há original perfeito. A
perfeição é, na melhor das hipóteses, apanágio da divindade e, no
caso da poesia, maneira perifrástica de enfatizar uma obviedade:
a da precedência cronológica.
De acordo com o neurocientista
Steven Pinker, o cérebro trabalha
com uma linguagem específica,
chamada por ele de mentalês, da
qual cada idioma falado nada
mais é que manifestação parcial.
Nenhuma das línguas naturais
expressa plenamente o mentalês.
Caso ele tenha razão, o poema
que se supõe o original é, a rigor, a
primeira tradução de um texto
inalcançável que se encontra ou
se encontrava entre os neurônios
do autor. Com as pistas fornecidas nessa primeira versão, outros
tentarão se aproximar desse original, mas, por definição, ninguém o alcançará. Acontece que o
poema composto em mentalês,
por ser inatingível e irreprodutível, não importa. Ele é somente
um ponto de partida.
O que conta são os realmente
existentes. Qual deles? Todos. Embora o poeta americano Robert
Frost dissesse que poesia é o que se
perde na tradução, o original de
um poema não é tanto a primeira
versão singular que está no passado, quanto o conjunto, que está
no futuro, de todas as suas traduções que foram, estão sendo ou
ainda serão feitas.
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