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São Paulo, segunda-feira, 28 de abril de 2003

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NELSON ASCHER

Poesia é o que se ganha na tradução

Traduzir poesia é considerado impossível. Como refazer o equilíbrio miraculoso de um soneto de Dante em inglês, a sucessão elegantemente cadenciada das oitavas reais de Camões em francês, a grandiloquência rebuscada de um monólogo shakespeariano em espanhol ou a simplicidade enganadora dos versos de Púchkin em português ?
E aqui ainda estamos não apenas dentro dos limites da mesma família linguística, a indo-européia, como também no âmbito da mesma cultura ocidental. No interior desses dois círculos quase coincidentes (se deixarmos de lado a metade oriental da família), as línguas se influenciaram mutuamente, intercambiando palavras, sons, elementos gramaticais, e tanto as convenções como as tradições literárias são mais ou menos comuns há milênios.
O amigo de um amigo (são sempre assim essas histórias) teve de fugir do Brasil durante a ditadura por estar ligado a algum grupo clandestino de esquerda e acabou parando na Polônia. Quem já ouviu as nobres cadências da língua de Czeslaw Milosz (TCHÊS-uav MÍ-uoch) sabe que esta se compõe de um emaranhado impossível de consoantes intercaladas às vezes por sons como "nhem" ou "nhom". Nem os outros eslavos acham fácil sua fonética, e os russos, em especial, recomendam a quem deseje pronunciá-la corretamente que o faça com uma batata quente na boca.
Bom, quando se deu conta de que sua temporada polonesa se prolongaria, o amigo do amigo resolveu aprender a falar com os nativos. Enquanto ele e seus colegas do curso de polonês para estrangeiros ainda praticavam o "bom dia, senhora, meu nome é", o único aluno não-ocidental, um chinês que também começara do zero, já se mostrava capaz de vender enciclopédias em Varsóvia. Indagado sobre seu talento superlativo, o chinês meio que se desculpou modestamente: "É que eu já falava inglês e, para mim, todas essas línguas indo-européias são iguais". De fato, quando é dia em Beijing, ainda é noite na Europa, onde todo gato, "cat", "chat", "katz", "kot" é pardo.
Se as dificuldades tradutórias parecem intransponíveis no seio de uma família incestuosa, ou seja, se é complicado converter um soneto tcheco em um soneto holandês, quão mais impossível não deve ser o transplante de um "kavya", uma elegia "shih" ou um "tanka" (composições líricas breves) escritos em sânscrito (sim, indo-europeu, mas da metade oriental) por Amaru, em chinês por Tu Fu ou em japonês por Saiguio para uma língua ocidental?
Por outro lado, se a distância geográfica acrescenta problemas, a temporal os multiplica. Escrever um soneto no século 13, quando esta era um forma nova, de vanguarda mesmo, tinha um significado cultural distinto daquele que tem fazê-lo hoje em dia, quando muitos veriam nisso um gesto retrógrado e esteticamente reacionário.
E, no entanto, traduz-se. Cada vez mais. Como e por quê?
O porquê tem a ver com o fato de que, desde pelo menos o princípio da modernidade, quase ninguém considera sua cultura local ou nacional como algo completo, auto-suficiente. O afã de viajar, conhecer outros povos e países, existe igualmente na poesia, com a vantagem de que esta nos oferece, de resto, um túnel do tempo.
Eis a razão que está na raiz, mas não faltam outras. Vários povos europeus no século 19, além de amargarem o domínio de suas terras por estrangeiros, ainda tinham de se calar quando esses se referiam à própria língua e literatura como, de algum modo, superiores, mais civilizadas. Assim, tchecos e catalães, húngaros e poloneses resolveram mostrar aos seus senhores que o que falavam não eram dialetos de camponeses analfabetos, mas línguas cultivadas o suficiente para acolher "A Divina Comédia" e "Macbeth", a "Ilíada" e a "Eneida".
Quanto ao como, não há um. Há, isto sim, muitos. Convém, contudo, pôr de lado duas noções que distorcem a discussão. Primeiro, traduzir poesia não é uma questão de fidelidade, pois, dado que o tradutor não cometa erros na compreensão do original, sua tarefa consiste em elaborar algo que está entre a equivalência e a resposta. Um poema traduzido relaciona-se de um modo que não é simples com aquele que, por assim dizer, o inspirou, respondendo aos problemas que ele apresenta com os recursos de uma língua distinta e, geralmente, com convenções de uma outra época.
Em segundo lugar, não pode haver tradução perfeita, pois tampouco há original perfeito. A perfeição é, na melhor das hipóteses, apanágio da divindade e, no caso da poesia, maneira perifrástica de enfatizar uma obviedade: a da precedência cronológica.
De acordo com o neurocientista Steven Pinker, o cérebro trabalha com uma linguagem específica, chamada por ele de mentalês, da qual cada idioma falado nada mais é que manifestação parcial. Nenhuma das línguas naturais expressa plenamente o mentalês.
Caso ele tenha razão, o poema que se supõe o original é, a rigor, a primeira tradução de um texto inalcançável que se encontra ou se encontrava entre os neurônios do autor. Com as pistas fornecidas nessa primeira versão, outros tentarão se aproximar desse original, mas, por definição, ninguém o alcançará. Acontece que o poema composto em mentalês, por ser inatingível e irreprodutível, não importa. Ele é somente um ponto de partida.
O que conta são os realmente existentes. Qual deles? Todos. Embora o poeta americano Robert Frost dissesse que poesia é o que se perde na tradução, o original de um poema não é tanto a primeira versão singular que está no passado, quanto o conjunto, que está no futuro, de todas as suas traduções que foram, estão sendo ou ainda serão feitas.


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