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Londres chama para o cenário pós-liberal
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
Quando caiu o Muro de Berlim, tive curiosidade de ir ver o
que se passou. Por sorte, vivi
um ano por ali, testemunhando a fragmentação da Iugoslávia, o desabamento do império
soviético, as fugas desesperadas dos náufragos albaneses.
Volto à Europa e, infelizmente, só terei dois dias para
observar um outro momento
histórico que me intriga e que
gostaria de estimular na discussão brasileira: o pós-liberalismo inglês, com a possível vitória dos trabalhistas na eleição de 1º de maio.
A maioria dos críticos de
Blair afirma que o liberalismo
não está caindo de fato porque
muitos dos componentes da
era conservadora ficarão de
pé, de forma que as verdadeiras diferenças entre os dois
têm de ser pesquisadas com
um potente microscópio.
É uma ilusão pensar que
Blair será uma espécie de anti-Thatcher, e que sua ida para
o poder vai significar uma onda de nacionalizações e reestruturação do Estado nas mesmas proporções de antes do período conservador.
Aliás, é, ao compreender que
algumas mudanças são irreversíveis e que só podem ser
criticadas com uma proposta
mais avançada, que Blair
mantém vivas suas chances
eleitorais. Propor uma volta
atrás seria uma espécie de suicídio.
O centro de toda a política
inglesa, conforme acentua Antony Guiddens, é a globalização, e Blair precisa dar uma
resposta diferente da de Thatcher, mas num cenário no qual
avança cada vez mais a liberdade do fluxo de capitais e
mercadorias, sobretudo a mercadoria informação, favorecida pelas grandes transformações da telemática.
Um dos temas que me interessam é o desemprego. Que
caminhos os ingleses vão adotar para encarar o problema?
Até o momento, tanto eles como os norte-americanos optaram pela flexibilização e, de
uma certa maneira, achatando um pouco seus trabalhadores, conseguiram manter um
nível menor que o dos outros.
No entanto, experiências mais
social-democratas, como na
Holanda e na Áustria, também estão encontrando seu caminho e podem ser consideradas, relativamente, bem-sucedidas.
Mas o problema que coloco é
o seguinte: existe volta na flexibilização? Trabalhadores
que deixaram empregos estáveis podem sonhar com novos
empregos da mesma natureza
ou devem aprender a se virar,
a se reequilibrar num mundo
mais complexo?
Levo comigo o livro ``Depois
do Sucesso, Fim de Século, Ansiedade e Identidade''. Seu autor é Ray Pahl, um sociólogo
que se especializou em pesquisar homens de sucesso na Inglaterra.
O livro constata que a idéia
de carreira, como uma gradação de passos ascendentes, está
sendo revolucionada. Poucos
esperam, como o faziam na década de 50, conquistar um posto e subir pacientemente na escala hierárquica.
No lugar dessa expectativa,
adota-se uma tática de combinar possibilidades, explorar
vários caminhos para se manter vivo e, alguns casos, prosperando.
Essas mudanças que se dão
entre empresários e gente da
classe média, no momento, reduzem um pouco a figura do
trabalhador apaixonado pela
sua empresa, apaixonado pelas suas tarefas. Há cada vez
mais uma tendência a ampliar
o horizonte cultural e a buscar
um equilíbrio entre vida profissional, afetiva, familiar e espiritual.
Os valores pós-materialistas
já vêm se infiltrando nas sociedades européia e norte-americana há alguns anos. Mas, por
incrível que pareça, o colapso
do pleno emprego acabou impulsionando o colapso de uma
idéia de carreira e revolucionando o próprio conceito de
sucesso.
Os exemplos servem para
mostrar como Blair vai trabalhar numa situação que se modifica com rapidez e para a
qual não se pode achar resposta no velho baú trabalhista.
Os dilemas ingleses podem
parecer remotos para o Brasil,
onde a invenção de emprego
tem algumas soluções ululantes como a reforma agrária.
Mas quem pegar o governo depois das transformações econômicas de inspiração liberal,
dificilmente voltará atrás. Decretar, de novo, o monopólio
estatal nas telecomunicações
será impensável a médio prazo.
Em toda a parte, o legado do
liberalismo colocará problemas novos para um débil e
carcomido arsenal de soluções.
Suponho, embora a suposição
seja muito prematura, que o
fenômeno individual de reequilíbrio num mundo de escassos empregos, acabará se
transferindo para o modelo de
desenvolvimento.
Dificilmente, os chamados
grandes objetivos de crescimento poderão ignorar os valores pós-materiais. O próprio
conceito de desenvolvimento
será colocado em xeque. Aliás,
já o foi pela ecologia e sobreviveu acrescentando o adjetivo
sustentável. Novos embates virão, e Londres no fim-de-semana será um bom lugar para
farejá-los, desde que se consiga
ler para além dos discursos otimistas dos políticos.
Há quem, no entanto, considere que o eleitorado inglês
pura e simplesmente está se
movendo para a esquerda, e
que a resposta de Blair deveria
ser muito mais radical, como
nas velhas propostas do Labor,
sempre traídas quando chegam ao governo.
Pode-se falar tudo no momento. Creio, no entanto, que
é preciso, pelo menos, admitir
que a situação é complexa e
tentar aprender com ela. Caso
contrário, a política pode se
reduzir a uma simples pajelança, em que cada um recita
sua oração, indiferente ao fluxo dos fatos.
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