São Paulo, domingo, 28 de maio de 2006

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Igreja vê "ameaça", acredita Bellocchio

Diretor comenta religião e novo filme, que participa do Festival de Cannes

A 59ª edição do festival, de teor marcadamente político e que foi aberta com o blockbuster "O Código Da Vinci", chega ao final hoje

SILVANA ARANTES
ENVIADA ESPECIAL A CANNES

O diretor italiano Marco Bellocchio, 66, disputou a Palma de Ouro no Festival de Cannes cinco vezes. A última delas em 2002, com "A Hora da Religião". Neste ano, ele voltou a Cannes com seu novo filme, "Il Regista di Matrimoni" (o diretor de casamentos), exibido na mostra Um Certo Olhar. Esta 59ª edição do festival, que termina hoje, teve sua hora da religião -a abertura com "O Código Da Vinci", cuja polêmica com a Igreja Católica Bellocchio comenta a seguir. O cineasta fala também de política, outro tema dominante no festival, por trás, entre outros, do candidato italiano à Palma, "Il Caimano", de Nanni Moretti. O filme de Moretti se refere ao ex-premiê Silvio Berlusconi, cuja "demonização por uma parte da esquerda" Bellocchio classifica como "um julgamento excessivamente moral".  

FOLHA - A frase "na Itália, os mortos estão no poder" é dita várias vezes em seu filme. É a idéia central do roteiro? MARCO BELLOCCHIO - Não é a idéia central, porque o filme vai em direção à vida. Mas a vitalidade do protagonista é minada por uma cultura dominante e mortificante, que impede o novo de emergir. Mais que uma cultura, é uma mentalidade incentivada pelo catolicismo, com seu conceito de que a melhor vida se encontra após a morte.

FOLHA - Como avalia a reação da Igreja Católica ao filme "O Código Da Vinci"? BELLOCCHIO - Acho que é um tipo de polêmica que vai se manter no nível da discussão, sem suscitar reações violentas, como no fundamentalismo. A Igreja Católica está preocupada em não perder sua autonomia. Com o vazio político de hoje, muitas pessoas procuram, de boa fé, algo de espiritual, de transcendente. Muitas vezes essa busca não vai em direção à Igreja Católica, que percebe a ameaça de ter sua construção histórico-teórica enfraquecida. A hipótese de que são João fosse Maria Madalena, que era amante de Jesus [presente no best-seller "O Código Da Vinci"], é algo que faz rir. Mas o livro vendeu mais de 40 milhões de exemplares. Como isso se explica? É que as pessoas estão à procura deste mistério. Mas a Igreja Católica quer que o mistério fique circunscrito aos muros do Vaticano, sem dividi-lo com ninguém.

FOLHA - O papa Bento 16 quer isso ainda mais do que João Paulo 2º? BELLOCCHIO - Não acho. [Karol] Wojtyla [João Paulo 2º] era muito rígido, mantendo certos princípios anacrônicos, quase criminosos, como a proibição do uso de contraceptivos, mesmo em países flagelados pela pobreza e pela Aids. São princípios tão rígidos que podem ser fatais. Mas têm de defender a transcendência. De todo modo, com o Paraíso ou o Inferno, estão em dificuldades porque precisam fazer acreditar que isso existe e é indiscutível.

FOLHA - Acha que Cannes premiará um filme em torno de Berlusconi, "Il Caimano", de Nanni Moretti? BELLOCCHIO - Depende do júri. Mas aconteceu uma coisa curiosa aqui. Esse filme foi lançado 15 dias antes das eleições na Itália e foi instrumentalizado como antiberlusconiano por uma parte da esquerda, que tinha em Berlusconi uma espécie de demônio. Agora que Berlusconi não está mais na primeira página, o filme pode ser visto como uma invenção cinematográfica, não política. Acho que é como Nanni Moretti gostaria que ele fosse julgado.

FOLHA - O sr. disse que a esquerda italiana "demonizou Berlusconi". Foi um erro? BELLOCCHIO - É um julgamento excessivamente moralista. Não que ele não tenha graves responsabilidades. Mas concentrar o discurso político contra a imagem de Berlusconi é um exagero. A Itália tem muitos problemas gravíssimos pelos quais o responsável não é Berlusconi. Será interessante ver a recepção desse filme no Brasil e em outros lugares que prescindam do julgamento político, do fantasma de Berlusconi. Isso na Itália não tem chance de acontecer, porque os cadáveres ainda estão no armário.

FOLHA - O sr. foi atacado na Itália quando fez o filme "Bom Dia, Noite", sobre o premiê Aldo Moro (1916-1978). Pretende voltar aos temas políticos? BELLOCCHIO - Parte da esquerda me acusou de ter sido muito benevolente com Moro, e outra parte da esquerda me acusou de ter tratado os brigadistas [do grupo Brigada Vermelha, autor do seqüestro que levou à morte do primeiro-ministro] de maneira muito humana, quando eles eram criminosos ferozes. Mas não faço nenhum filme para demonstrar uma tese, política ou qualquer que seja. Mesmo falando de Aldo Moro, queria contar alguma coisa que me interessava, não fazer uma reconstituição histórica.

FOLHA - Em seu novo filme, um diretor de cinema veterano forja a própria morte para ser reconhecido. O sr. está falando da morte do cinema de autor? BELLOCCHIO - De fato, vivemos um período de passagem. O cinema italiano dos 60, aquele mítico, está no fim. Como é natural, um novo cinema está surgindo. Esse novo cinema, diferentemente do que ocorreu conosco, é muito influenciado pela televisão, no plano econômico e estético.

FOLHA - Neste festival, quase todos os filmes europeus mostram o homem irremediavelmente infeliz. É uma tendência? BELLOCCHIO - Antes do filme, está a idéia do cineasta sobre o mundo, a sociedade. Depois disso é que vem a imagem, que corresponde ao seu pensamento. O pessimismo é o pensamento dominante da classe intelectual européia.


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