São Paulo, segunda-feira, 28 de maio de 2007

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NELSON ASCHER

A roda quadrada


O que os franceses fizeram nas eleições foi lembrar ao Estado qual sua função primordial

NICOLAS Sarkozy, o novo presidente da França, deve sua eleição em boa parte à promessa de que adotaria uma linha dura diante da criminalidade e da imigração ilegal, temas, aliás, correlacionados, pois os imigrantes estão sobre-representados no crime e nas prisões. Além disso, escancarar as fronteiras do país rende dividendos não a quem queira produzir, integrar-se ou precise se refugiar de perseguições, mas aos contrabandistas de gente e sua respectiva clientela.
Se comparados com os números brasileiros (ou pior ainda, com os do paraíso proto-socialista de Chávez), os da criminalidade na Europa ocidental parecem beirar o ideal em se ainda é possível passear à noite pelas ruas e avenidas parisienses (bem menos, porém, pelos subúrbios não-turísticos) e sobreviver para contar a história, também é verdade que a situação tem piorado sistematicamente nas últimas décadas. E tal piora coincide com a adoção cada vez mais ampla de uma filosofia aparentemente generosa e liberal segundo a qual o crime é ou uma doença individual curável cuja maior vítima seria o criminoso, ou o efeito colateral de imperfeições sociais capazes de serem solucionadas com mais gastos públicos.
Em seu cerne, a concepção acima nega que o criminoso seja pessoalmente responsável por seus atos, que estes possam ter decorrido de uma escolha consciente. Tendo isso em vista, puni-lo, além de injusto, de nada adiantaria, enquanto detê-lo, nem que fosse para proteger dele os demais cidadãos, equivaleria a vitimizá-lo novamente e a negar-lhe seus direitos humanos elementares. (E é melhor deixar de lado os lunáticos que vêem nos delinqüentes tanto "rebeldes primitivos" como a vanguarda de uma futura revolução.)
Este modo de encarar o crime coincide com a visão que prevalece seja no governo brasileiro, seja entre nossas elites liberais. Julga-se, aqui também, que o problema só se resolverá quando forem atacadas suas causas, tais como exclusão social, desigualdade econômica, falta de escolaridade etc. E, dado que as causas são profundas, estruturais, não há como pensar em equacioná-las a curto prazo. São as providências tomadas pelo Estado redistributivo que, daqui a dois ou três decênios, instaurarão uma nova ordem na qual nem sequer passará pela cabeça de alguém fazer mal ao próximo.
A diferença entre Brasil e França é que lá o Estado redistributivo se instalou há mais de 50 anos. As promessas apresentadas hoje aqui lá foram feitas logo depois da Segunda Guerra. E os eleitores tiveram tempo suficiente para verificar se o modelo funcionava. Seu veredicto é o de que, se durante períodos de crescimento econômico a criminalidade de fato se reduziu, ela voltou a crescer com a estagnação e o desemprego. Estes, por sua vez, resultam do modelo socioeconômico adotado que se encontra entre as causas indiretas da insegurança crescente.
O que os franceses fizeram nas recentes eleições foi lembrar ao Estado qual sua função primordial. Este, afinal, legitima-se classicamente como o defensor dos cidadãos inocentes perante predadores diversos. Já o Estado redistributivo busca sua legitimidade, bom, na redistribuição de renda, a panacéia que, de acordo com seus paladinos, remediaria todos os males. Esse tipo de Estado não descuida de reservar para si e seus associados uma comissão pelos serviços prestados e, mais nocivo ainda, tende, sempre com as melhores intenções, a crescer, "responsabilizando-se" por funções antes desempenhadas pela iniciativa privada ou pela sociedade civil.
A essa altura, gerações de políticos e funcionários públicos gauleses acreditavam possuir um eleitorado cativo graças à criação de um sistema de saúde meio arruinado, de uma rede escolar menos e menos operante e, sobretudo, de empregos improdutivos no setor público. Mas, como não desapareceu, o crime tampouco deixou de preocupar os eleitores, porque nenhum eleitorado abre mão de condições mínimas de segurança. O que de extra o governo ofereça pode, talvez, agradar a este ou aquele setor, mas reivindicações básicas não são esquecidas.
Embora não existam em princípio vínculos lógicos ou necessários entre a defesa do Estado redistributivo e a visão "Poliana" da criminalidade, na prática ambas derivam de certa interpretação da natureza humana, uma interpretação que se caracteriza por ser impermeável aos "feedbacks" da realidade empírica.
Daí que o Brasil esteja condenado a não aprender nada com os fracassos alheios e a reinventar, com meio século de defasagem, a roda quadrada na qual nem os franceses acreditam mais.


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