São Paulo, sexta-feira, 28 de maio de 2010

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CARLOS HEITOR CONY

Retórica e subdesenvolvimento


O Haiti ganhou no peito e no verbo, Cuba foi expulsa da comunidade e o tirano Papa Doc soltou foguetes


ACONTECEM COISAS por aí. Na vida de qualquer um, o imprevisto faz parte do previsto, mesmo assim há espaço para algumas surpresas.
No meu tempo de repórter, esse insistente escriba teve certa vez um dia atribulado. Depois de comparecer à inauguração de escola pública, almoçar com um embaixador, entrevistar um policial e escrever um texto sobre o Afeganistão, foi obrigado a assistir a uma sessão no Instituto dos Advogados, quando seria entregue o prêmio de Direitos Humanos a um causídico e jornalista.
Já estava na idade e no tempo de não mais ficar surpreendido com nada, mas esta dose foi para nenhum leão botar defeito. Começa que os nobres advogados, cobras dos cobras nas lides e letras jurídicas, não conseguiram chegar a um acordo a respeito do nome do professor Albert Sabin, presente à cerimônia na qualidade de parente do homenageado.
Luminares do direito, de jurisprudência firmada e formada ao longo de inatacáveis vidas públicas, chamaram o descobridor da vacina Sabin de tudo, menos de Albert Sabin.
Ouvi, pela ordem, os nomes: Alberto Sabino, Roberto Sábio, Albert Saban, Albert Sá e, para coroar, num esforço de imaginação criadora, um advogado de foro carioca se referiu ao grande sábio ali presente como Albert Louis Pasteur!
Depois dessa, eu deveria ficar tranquilo para os restos de meus dias na face da Terra. Mas -como sempre- estava mal informado. Ouvi diversos oradores, inclusive alguns professores de direito da Venezuela, do Peru, da Colômbia e da Argentina, que a América Latina nada tinha a aprender a respeito dos Direitos Humanos.
Citaram datas, congressos, simpósios, reuniões, atas e pareceres provando que bem antes da Revolução Francesa, da Carta Magna, séculos antes da Declaração Universal dos Direitos do Homem, antes do liberalismo americano, enfim, antes da própria noção de que cada ser humano tem direito a nascer, viver e morrer em paz, já os juristas latino-americanos haviam lavado a égua.
Para que não pairassem dúvidas, foram mencionadas as atas, pareceres e congressos nos quais os juristas da América Latina estabeleciam a prioridade básica do homem: ter direito a ser homem.
Ouvi os discursos, prestei esforçada atenção a cada orador e, de repente, eu me senti numa casa de loucos. Impossível que eméritos magistrados, homens que escreveram 50, 80, 120 tomos de saber jurídico, ignorassem a realidade a que me habituei, a que todos nós estamos habituados.
Sou homem de poucas palavras e muitos silêncios. Fiquei tranquilo no meu canto, mas vez por outra tive vontade de dar um grito. Afinal, com raríssimas exceções, os países latino-americanos são exatamente os que mais constantemente, os que mais violentamente, agridem os direitos humanos. Isso está na cara, tão na cara que isso não precisa ser provado.
No entanto, os nobres cultores da ciência jurídica dão-se por bem pagos e gratificados: eles fizeram, à sua maneira, a obrigação que lhes competia: as atas existem mesmo e provam que, de acordo com resoluções, parágrafos e alíneas, nenhum cidadão latino-americano seria privado de seu direito de homem.
Recordei uma conferência da OEA a que assisti, em Punta del Este, na qual foi proposta a expulsão de Cuba. Ouvi o chanceler do Haiti pronunciar um discurso de muitas horas.
Foi o parecer decisivo para que os membros da OEA, com exceção do Brasil e da Argentina, votassem pela exclusão de Cuba da organização, sob o pretexto de que desrespeitava criminosamente os direitos humanos, adotando os fuzilamentos e as torturas aos que combatiam o regime de Fidel Castro.
Num francês impecável, o representante de Papa Doc na reunião tornou desnecessário o discurso de Foster Dulles, que havia solicitado aquela assembleia para punir Cuba, que foi defendida tibiamente por Che Guevara.
O Haiti ganhou no peito e no verbo, Cuba foi expulsa da comunidade e Papa Doc, um dos maiores tiranos do século 20, soltou foguetes de alegria, louvando o sucesso de seu chanceler. Nesse dia memorável, descobri que o mal da América Latina não é o subdesenvolvimento. É a retórica.


AMANHÃ NA ILUSTRADA
Antonio Cicero




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