São Paulo, sábado, 28 de maio de 2011

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TRÉPLICA "TITÍLIA E O DEMONÃO"

A marquesa de Santos não merece ganhar hagiografia

OSCAR PILAGALLO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na semana passada, identifiquei a ingenuidade de Paulo Rezzutti por deduzir, a partir de uma carta de d. Pedro 1º à marquesa de Santos, que o imperador, zeloso dos interesses do Estado, não atendia aos pedidos de sua amante oficial nem lhe facilitava as negociatas.
Agora, o autor vai mais longe ao afirmar, como evidência do comportamento virtuoso do casal no trato da coisa pública, que é "incrível como nenhuma das 157 cartas conhecidas anteriormente ou das 94 que descobri trata de negociatas".
Bem, o que ele queria? Que o governante deixasse atrás de si um rastro por escrito dando conta de nomeações e intermediações sobre as quais a marquesa obtinha vantagens financeiras?
Tal raciocínio é de uma candura que desafia o senso comum. Não é razoável a exigência de recibo para atestar a corrupção, sobretudo se ela é acertada sob os lençóis. Por que o imperador, ou qualquer pessoa no mundo, iria deixar registrado de próprio punho alguma informação que o comprometesse?
Não, o fato de as cartas não abordarem maracutaias não constitui prova de que elas não tenham ocorrido.
Se a documentação é inconclusiva, a boa conduta de pesquisa seria recorrer aos depoimentos dos contemporâneos, filtrando-os de forma a evitar que a narrativa fosse contaminada pelo jogo de interesses da época.

FAVORES DA CORTE
Rezzutti diz que meu argumento "lembra a ladainha do velho conselheiro Drummond". Ora, eu não usaria o depoimento de Vasconcelos de Drummond, justamente por sua falta de isenção, já que era amigo de José Bonifácio de Andrada e Silva, notório adversário da marquesa.
Não me basearia também, e pelo mesmo motivo, nas descrições de Wenzel de Mareschal, que considerava a marquesa o "canal das promoções" aos que quisessem "favores da corte".
Representante do governo austríaco no Rio de Janeiro, o barão era muito próximo da esposa do imperador, a sua conterrânea princesa Leopoldina, o que certamente influiu na sua avaliação da marquesa.
A realidade, no entanto, é que vários relatos de gente que conhecia os meandros do poder confluem para a percepção de que a marquesa traficava influência.
Diplomatas estrangeiros -como o americano Condy Raguet, o sueco Lourenço Westin e o alemão Ignaz von Olfers- informavam seus governos sobre a falta de escrúpulos no Rio.
O insuspeito Jean-Baptiste Debret, pintor francês que frequentava a corte, corrobora a versão, e chega a dar detalhes do acerto entre o imperador e sua amante para assegurar que a propina fosse paga.
A marquesa de Santos sofreu na mão de seus detratores, como diz Rezzutti? Talvez sim. Ela nunca teve tanto poder para que lhe fosse atribuída a responsabilidade por tudo o que de errado acontecia no Brasil.
Nesse sentido, seria forte candidata a uma revisão histórica. Mas não basta a inversão automática do sinal. Rezzutti informa que escreverá sobre a vida de Domitila de Castro. Que não seja uma hagiografia -a personagem merece todas as nuances.

OSCAR PILAGALLO é jornalista e autor de "A História do Brasil no Século 20" (Publifolha).


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