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CARLTON ARTS
TEATRO
Robert Lepage põe o ser humano na máquina de lavar
SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
Houve um tempo em que a
vanguarda recorria à máquina como a um antídoto contra
o realismo, visto como uma indulgente autocontemplação. Na
Rússia, diante da iminência de
um novo homem, fruto da revolução, Meierhold abandona a exposição da "fatia de vida" burguesa preconizada por seu mestre
Stanislavsky e desafia o senso comum com a atuação "biomecânica" e o cenário não figurativo.
Jean Cocteau, protótipo de artista multimídia, preconiza após a
catástrofe da guerra mundial:
"Um mundo vai terminar, um
outro começará. Americanos, parece que serão vocês que decidirão se esse outro mundo será luminoso ou tenebroso".
Hoje, no começo de mais um século, cabe a Robert Lepage fazer o
balanço desse mundo. As máquinas levaram o homem à Lua, numa corrida de utopias entre EUA
e URSS, e lavam a roupa suja em
instantes, mas a face luminosa da
tecnologia não eliminou a face escura da solidão. No mal-estar da
civilização, não surgiu um novo
homem, mas um "deus protético", na expressão de Freud, artificialmente superpoderoso, mas
que continua indo ao teatro em
busca de sua face refletida.
Assim, em "the far side of the
moon", munido com o melhor de
dois mundos, as conquistas de
Meierhold e multimídia de Cocteau, Lepage volta à autocontemplação, para lavar essa roupa suja.
Dispõe com maestria da sintaxe
cinematográfica, o teatro-dança,
o teatro de animação, as videoinstalações, a música de Laurie Anderson, mas mantém a narrativa
linear, as pausas de subtexto do
método Stanislavsky, desdobrando-se em personagens naturalisticamente construídos, expondo
seus momentos mais íntimos para o voyeurismo da platéia.
Cruel, sem indulgência, mas
nunca mórbido, revela o patético
do ser humano por um humor
agridoce, que une as subversões
visuais de Jacques Tati à fluência
verbal do melhor Woody Allen. À
fábula dos irmãos gêmeos que se
odeiam sobrepõem-se os dados
da corrida espacial entre americanos e soviéticos e, como no "Finnegans Wake", de Joyce, cada elemento é todos os elementos, toda
janela redonda é uma passagem:
escotilha de nave, janela de máquina, aquário, televisão, relógio,
eixo do eterno retorno.
Todas as mídias giram juntas
em harmonia, meias e camisas na
máquina de lavar: Lepage promove a grande síntese, e o corpo estranho que resulta em cena, pedra
esquecida num bolso, é o homem.
Houve um tempo em que a máquina no teatro trazia um deus
que resgatava a ordem. Hoje, o
grupo Ex-Machina de Lepage traz
o humano de volta à cena, cruelmente exposto, como em uma vivisseção. Órfão, diante do abismo,
passado e limpo, o homem tenta
falar com Deus, mas quem atende
é a secretária eletrônica.
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