São Paulo, quinta-feira, 28 de junho de 2001

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CARLTON ARTS

TEATRO

Robert Lepage põe o ser humano na máquina de lavar

SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Houve um tempo em que a vanguarda recorria à máquina como a um antídoto contra o realismo, visto como uma indulgente autocontemplação. Na Rússia, diante da iminência de um novo homem, fruto da revolução, Meierhold abandona a exposição da "fatia de vida" burguesa preconizada por seu mestre Stanislavsky e desafia o senso comum com a atuação "biomecânica" e o cenário não figurativo.
Jean Cocteau, protótipo de artista multimídia, preconiza após a catástrofe da guerra mundial: "Um mundo vai terminar, um outro começará. Americanos, parece que serão vocês que decidirão se esse outro mundo será luminoso ou tenebroso".
Hoje, no começo de mais um século, cabe a Robert Lepage fazer o balanço desse mundo. As máquinas levaram o homem à Lua, numa corrida de utopias entre EUA e URSS, e lavam a roupa suja em instantes, mas a face luminosa da tecnologia não eliminou a face escura da solidão. No mal-estar da civilização, não surgiu um novo homem, mas um "deus protético", na expressão de Freud, artificialmente superpoderoso, mas que continua indo ao teatro em busca de sua face refletida.
Assim, em "the far side of the moon", munido com o melhor de dois mundos, as conquistas de Meierhold e multimídia de Cocteau, Lepage volta à autocontemplação, para lavar essa roupa suja. Dispõe com maestria da sintaxe cinematográfica, o teatro-dança, o teatro de animação, as videoinstalações, a música de Laurie Anderson, mas mantém a narrativa linear, as pausas de subtexto do método Stanislavsky, desdobrando-se em personagens naturalisticamente construídos, expondo seus momentos mais íntimos para o voyeurismo da platéia.
Cruel, sem indulgência, mas nunca mórbido, revela o patético do ser humano por um humor agridoce, que une as subversões visuais de Jacques Tati à fluência verbal do melhor Woody Allen. À fábula dos irmãos gêmeos que se odeiam sobrepõem-se os dados da corrida espacial entre americanos e soviéticos e, como no "Finnegans Wake", de Joyce, cada elemento é todos os elementos, toda janela redonda é uma passagem: escotilha de nave, janela de máquina, aquário, televisão, relógio, eixo do eterno retorno.
Todas as mídias giram juntas em harmonia, meias e camisas na máquina de lavar: Lepage promove a grande síntese, e o corpo estranho que resulta em cena, pedra esquecida num bolso, é o homem.
Houve um tempo em que a máquina no teatro trazia um deus que resgatava a ordem. Hoje, o grupo Ex-Machina de Lepage traz o humano de volta à cena, cruelmente exposto, como em uma vivisseção. Órfão, diante do abismo, passado e limpo, o homem tenta falar com Deus, mas quem atende é a secretária eletrônica.


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