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RODAPÉ
Mentiras e verdades da colméia humana
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
O prêmio Nascente (promovido pela USP) tem revelado
nomes que estão fazendo história
na literatura brasileira, como Fernando Bonassi e Juliano Garcia
Pessanha. Por isso, sempre vale a
pena examinar uma obra que recebeu sua chancela, como é o caso
do recém-lançado "O Mentiroso", de Tony Monti, vencedor do
Nascente no ano passado.
O livro é composto por nove
contos. Aparentemente, não há
unidade entre eles, o que é normal
(ou deveríamos dizer: estrutural)
em um gênero que prima pela
apreensão da descontinuidade da
experiência. Desde o início, porém, Monti procura nos convencer de que haveria algum fundo
comum nessas narrativas.
O título do livro, por exemplo,
não corresponde a nenhum conto
em particular, o que nos leva a
imaginar que há algo de "mentiroso" em cada um deles. Além
disso, os textos são precedidos de
uma "pequena explicação" em
que o autor faz sua profissão de fé:
"A mentira é o que está na base
dos textos que se seguem. (...) Nos
textos, mentem personagens,
narradores, autor (por fingir acreditar estar dizendo algo significativo) e leitor (não se exclua). Minto também agora quando pareço
consciente dos momentos em que
menti".
Mentira e fingimento são temas
recorrentes na literatura e podem
significar ora um elogio do artifício (como no Oscar Wilde de "A
Decadência da Mentira"), ora um
retorno à autenticidade incubada
na ficção (como no poema "Autopsicografia", de Fernando Pessoa), ora uma crítica ao idealismo
(a definição de Adorno para a arte
como "magia livre da mentira de
ser verdade").
No entanto, dificilmente reconhecemos essas acepções nos
contos de Tony Monti. Não há
ambição programática no conjunto de "O Mentiroso", pois
tampouco há mentiras em todos
os contos que o integram. O que
há, sim, são deslocamentos de
identidade (que não se confundem com fraudes) e ambiguidades narrativas (que são diferentes
de farsas).
Dois exemplos. No conto "Jogo
Amistoso", uma garota de programa e o freguês de uma casa noturna se cortejam mutuamente.
Cada parágrafo (e às vezes cada
frase de um mesmo parágrafo) é
escrito em um foco narrativo, reproduzindo sucessivamente o
ponto de vista de um e de outro. E
tal variação de identidade reforça,
por sua vez, a ambivalência da
aproximação que envolve simultaneamente desejo e barganha.
Já em "Sob o Sol", o narrador
descreve seu preguiçoso preparativo para uma caminhada. Ao final, percebemos que ele foi semeando aqui e ali frases sobre sua
ex-namorada ("deixei-a apesar de
gostar dela, deixei porque ela não
compreendia que o mundo era
um pouco pior"; "seria possível
que ela ignorasse a morte?") que
preparavam o desfecho homicida
de suas vagas inquietações metafísicas.
A esses exercícios de estilo poderíamos acrescentar "O Outro" e
"Ao Museu do Prado", em que o
tema do duplo, da duplicação da
personalidade, resvala no realismo fantástico, com lugares públicos como a praça, o metrô e o museu constituindo o espaço ideal
para identidades à deriva.
Como todo exercício, todavia,
os contos citados estão longe da
grande mentira que suspende
nossas superstições empiristas e
que é a verdade suprema da literatura. No caso de Monti, a mentira
só é realmente inquietante em
dois textos do livro. Em "Mundo
Animal", o narrador descreve
com voz fria e sem sobressaltos
um documentário de TV sobre lagartos da Malásia cujos hábitos
sexuais vão tomando uma dimensão simbólica assustadora. Em
nenhum momento o evidente paralelismo com as perversões humanas é enunciado -mas, por
isso mesmo, ele é muito mais verdadeiro do que a banalidade factual do documentário.
E esse mesmo tipo de refração
entre simbólico e literal ocorre em
"A Colméia", uma espécie de ficção científica em que uma cidade
de produtores de mel é submetida
a um regime político de exceção
que arregimenta homens, mulheres e crianças segundo a organização fantasmagórica de um exército de abelhas. Aqui, o inverossímil
se faz natural na voz de um narrador que, como nós, sobrevive à
claustrofobia da colméia humana
entre leituras e devaneios.
O Mentiroso
Autor: Tony Monti
Editora: 7 Letras
Quanto: R$ 15 (76 págs.)
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