São Paulo, quarta-feira, 28 de junho de 2006

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MARCELO COELHO

DVDs, guia de compras

Dicas para escolher filmes, musicais ou não, para ter e rever como quem faz uma oração

O melhor, no meu caso, seria comprar DVDs de óperas, que podem ser vistos mais de uma vez


SEMPRE ME sinto meio tolo quando compro um DVD. Não sou dos que assistem várias vezes a um mesmo filme, de modo que a tentadora e fina caixinha que vejo à venda na locadora terminará apenas ocupando o espaço mal definido que possuo entre o controle remoto e as listas telefônicas -outro objeto cada vez mais consignado à inutilidade e ao esquecimento.
Há coisas, entretanto, que merecem ser compradas. "Sob a Névoa da Guerra", excelente documentário baseado numa entrevista com Robert McNamara, secretário de Defesa dos Estados Unidos durante a Guerra do Vietnã, pode ser visto inúmeras vezes, tal a densidade inexplicável daquilo que se revela ali. Um bom sujeito, raciocinando claramente, tomado pela emotividade que costuma acometer os octogenários, explica as razões, a lógica "humana", do genocídio que praticou.
Também nessa linha, o documentário "Arquitetura da Destruição", de Peter Cohen, é para ser revisto exaustivamente. Enfocando o nazismo a partir das preferências estéticas de seus líderes, trata-se de um filme esclarecedor e inesgotável, ao notar gradualmente como certas opiniões "normais" se transfiguram em patologia e criminalidade.
Mas o melhor, no meu caso, seria comprar DVDs de óperas e concertos, que sempre podem ser vistos mais de uma vez. Não tive muita sorte: alguns dos itens a que não resisti se revelaram decepcionantes.
A exceção, nesse caso, é um filme em que Rubinstein toca o "Concerto nš 4" de Beethoven, acoplado ao primeiro movimento do "Concerto para Violino" de Mendelssohn (com um Jascha Heifetz perfeito, mas distante e apressado) e a uma extraordinária apresentação do violoncelista Gregor Piatigorski, no concerto de William Walton. Vale abrir mais um parágrafo.
Naquelas tomadas em preto-e-branco, da década de 50, a formalidade dos recitalistas não podia ser maior. Temos de Arthur Rubinstein a imagem de um velhinho esfuziante, algo frívolo, sempre animado nos seus cabelinhos brancos. Para tocar Beethoven, entretanto, ele se investe de uma seriedade quase religiosa, mal agradecendo os aplausos da platéia. Com seu perfil de tartaruga e os pequenos olhos semicerrados, Rubinstein inaugura os primeiros compassos do concerto quase secamente, sem usar nada do pedal, e cada frase da música traça um arco simples, desenvolto e preciso sobre o fundo agitado da orquestra. É como se a imagem em preto-e-branco do filme, adequada às teclas do piano e à casaca do pianista, ganhasse corpo e vida nas notas musicais, e nada mais que isso é necessário para quem vê e escuta aquela música.
O grande destaque do DVD, entretanto, é Gregor Piatigorski. Trata-se de um daqueles rostos talhados a faca, cuja impassibilidade lembra um pouco a de Buster Keaton, com a semicalvície lambida da mais impecável brilhantina. Ele ataca as terríveis passagens de virtuosismo do concerto de Walton como se fosse um médico examinando uma amigdalite de rotina e consegue ao mesmo tempo responder com máximo calor aos momentos de lirismo, que não são poucos, a que se concede o moderno compositor britânico.
Volto sempre a esse DVD quando preciso ver uma coisa difícil realizada com fluência e com frieza; dizem que Brahms, ao ver pela primeira vez Liszt tocar piano, entregou-se a um constrangedor ataque de riso: é que ele não conseguia acreditar num simples ser humano realizando tais proezas ali, tão normal, à sua frente.
Se não é o caso de rir diante de imagens congeladas no tempo, pelo menos um sentimento de exaltação, de ânimo, se produz com um filme desses.
Mas estou falando desses DVDs apenas para reduzir ao mínimo minhas opiniões sobre um recente lançamento à disposição nas locadoras: trata-se de "Ordet" ("A Palavra"), clássico de Carl Dreyer feito em 1955. Quatro ou cinco formas de religião se põem em confronto nessa história, que envolve uma família de prósperos fazendeiros na Dinamarca. Um dos filhos acredita ser Jesus e se diz capaz de fazer milagres. Tanto o patriarca, bastante religioso, quanto os outros dois irmãos, rebeldes ao tradicionalismo, tratam-no como louco -o que ele talvez seja.
O fato é que milagres começam a acontecer. Com uma verdade imensa e simples, fortalecida por enquadramentos sempre expressivos, mas nunca enfáticos, Dreyer põe nossas convicções de cabeça para baixo. É ver para crer. Talvez milagres não se repitam com freqüência. Mas esse é um DVD para ter em casa e rever sempre, como quem faz uma oração.


@ - coelhofsp@uol.com.br

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