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MARCELO COELHO
DVDs, guia de compras
Dicas para escolher filmes, musicais ou não, para ter e rever como quem faz uma oração
O melhor, no meu caso, seria comprar DVDs de óperas, que podem ser vistos mais de uma vez
SEMPRE ME sinto meio tolo
quando compro um DVD. Não
sou dos que assistem várias vezes a um mesmo filme, de modo que
a tentadora e fina caixinha que vejo à
venda na locadora terminará apenas
ocupando o espaço mal definido que
possuo entre o controle remoto e as
listas telefônicas -outro objeto cada
vez mais consignado à inutilidade e
ao esquecimento.
Há coisas, entretanto, que merecem ser compradas. "Sob a Névoa da
Guerra", excelente documentário
baseado numa entrevista com Robert McNamara, secretário de Defesa dos Estados Unidos durante a
Guerra do Vietnã, pode ser visto inúmeras vezes, tal a densidade inexplicável daquilo que se revela ali. Um
bom sujeito, raciocinando claramente, tomado pela emotividade
que costuma acometer os octogenários, explica as razões, a lógica "humana", do genocídio que praticou.
Também nessa linha, o documentário "Arquitetura da Destruição",
de Peter Cohen, é para ser revisto
exaustivamente. Enfocando o nazismo a partir das preferências estéticas de seus líderes, trata-se de um
filme esclarecedor e inesgotável, ao
notar gradualmente como certas
opiniões "normais" se transfiguram
em patologia e criminalidade.
Mas o melhor, no meu caso, seria
comprar DVDs de óperas e concertos, que sempre podem ser vistos
mais de uma vez. Não tive muita sorte: alguns dos itens a que não resisti
se revelaram decepcionantes.
A exceção, nesse caso, é um filme
em que Rubinstein toca o "Concerto
nš 4" de Beethoven, acoplado ao primeiro movimento do "Concerto para Violino" de Mendelssohn (com
um Jascha Heifetz perfeito, mas distante e apressado) e a uma extraordinária apresentação do violoncelista Gregor Piatigorski, no concerto
de William Walton. Vale abrir mais
um parágrafo.
Naquelas tomadas em preto-e-branco, da década de 50, a formalidade dos recitalistas não podia ser
maior. Temos de Arthur Rubinstein
a imagem de um velhinho esfuziante, algo frívolo, sempre animado nos
seus cabelinhos brancos. Para tocar
Beethoven, entretanto, ele se investe de uma seriedade quase religiosa,
mal agradecendo os aplausos da platéia. Com seu perfil de tartaruga e os
pequenos olhos semicerrados, Rubinstein inaugura os primeiros
compassos do concerto quase secamente, sem usar nada do pedal, e cada frase da música traça um arco
simples, desenvolto e preciso sobre
o fundo agitado da orquestra. É como se a imagem em preto-e-branco
do filme, adequada às teclas do piano e à casaca do pianista, ganhasse
corpo e vida nas notas musicais, e
nada mais que isso é necessário para
quem vê e escuta aquela música.
O grande destaque do DVD, entretanto, é Gregor Piatigorski. Trata-se
de um daqueles rostos talhados a faca, cuja impassibilidade lembra um
pouco a de Buster Keaton, com a semicalvície lambida da mais impecável brilhantina. Ele ataca as terríveis
passagens de virtuosismo do concerto de Walton como se fosse um
médico examinando uma amigdalite de rotina e consegue ao mesmo
tempo responder com máximo calor aos momentos de lirismo, que
não são poucos, a que se concede o
moderno compositor britânico.
Volto sempre a esse DVD quando
preciso ver uma coisa difícil realizada com fluência e com frieza; dizem
que Brahms, ao ver pela primeira
vez Liszt tocar piano, entregou-se a
um constrangedor ataque de riso: é
que ele não conseguia acreditar num
simples ser humano realizando tais
proezas ali, tão normal, à sua frente.
Se não é o caso de rir diante de
imagens congeladas no tempo, pelo
menos um sentimento de exaltação,
de ânimo, se produz com um filme
desses.
Mas estou falando desses DVDs
apenas para reduzir ao mínimo minhas opiniões sobre um recente lançamento à disposição nas locadoras:
trata-se de "Ordet" ("A Palavra"),
clássico de Carl Dreyer feito em
1955. Quatro ou cinco formas de religião se põem em confronto nessa
história, que envolve uma família de
prósperos fazendeiros na Dinamarca. Um dos filhos acredita ser Jesus e
se diz capaz de fazer milagres. Tanto
o patriarca, bastante religioso, quanto os outros dois irmãos, rebeldes ao
tradicionalismo, tratam-no como
louco -o que ele talvez seja.
O fato é que milagres começam a
acontecer. Com uma verdade imensa e simples, fortalecida por enquadramentos sempre expressivos, mas
nunca enfáticos, Dreyer põe nossas
convicções de cabeça para baixo. É
ver para crer. Talvez milagres não se
repitam com freqüência. Mas esse é
um DVD para ter em casa e rever
sempre, como quem faz uma oração.
@ - coelhofsp@uol.com.br
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