São Paulo, sábado, 28 de junho de 2008

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6ª Flip

Memória da ditadura guia argentino

Pelo ponto de vista de uma bedel escolar, Martín Kohan narra momentos derradeiros do regime em "Ciências Morais'

Escritor é um dos nomes escalados para a Flip, evento no qual participa da mesa "Estética do Frio" ao lado do gaúcho Vitor Ramil

EM BUENOS AIRES

O pior já tinha passado. Em 1982, durante a Guerra das Malvinas, a ditadura argentina (1976-1983) dava mostras de que logo chegaria ao fim. Ainda assim, no tradicional Colegio Nacional de Buenos Aires a disciplina seguia sendo muito rígida, inspirada nos procedimentos militares. Formar fila, cantar o hino, esperar em pé pelos professores, usar meias de acordo com o uniforme e manter o cabelo curto. Quando Martín Kohan tinha 15 anos, esse era seu universo escolar.
A partir da memória daquele tempo, o escritor argentino criou "Ciências Morais". "O romance está baseado num mundo em que eu vivi, mas não quis que fosse uma obra autobiográfica. Então busquei entender como era o olhar de outras pessoas que faziam parte daquela ordem, que formavam a base de ação do Estado, no nível mais baixo", contou Martín Kohan, 40, à Folha, em entrevista em Buenos Aires.
O enfoque escolhido foi o da responsável pela disciplina de uma das classes -naquela época, havia um bedel por turma. María Teresa era uma funcionária exemplar. Cumpria resignadamente ordens dos superiores, inspecionava o asseio e o comportamento dos alunos e não se interessava por política. Tratava-se, para Kohan, de uma peça num esquema de hierarquia moral que permitia que a ditadura funcionasse.
"Minha geração foi a seguinte depois daquela que sentiu na carne as perseguições. Por isso, esta foi mais militante ao exigir reparos do Estado, e com razão. Por outro lado, as pessoas da minha idade tiveram um pouco mais de distância dos fatos. E isso nos permitiu ver as coisas de modo mais oblíquo, menos maniqueísta. De modo nenhum deixo de compartilhar a idéia de que houve um massacre brutal. Mas, se observarmos detalhes daquela sociedade, poderemos entender como foi possível que ela tenha sido de alguma maneira cúmplice do que se passou."
A trama de "Ciências Morais" começa a ganhar dramaticidade quando María Teresa resolve investigar a suspeita de que um dos alunos anda fumando nos momentos de recreio. Esconde-se, então, no banheiro masculino. O confronto com a intimidade dos adolescentes, ainda que por detrás da porta de um dos cubículos, apresenta-lhe um aspecto do mundo em que vivia do qual parecia desavisada.
"Durante todo o tempo, esta mulher acredita que faz o correto, o que lhe cabe para manter uma ordem que nem sequer questiona. Mas, a partir do momento em que se esconde no banheiro masculino, ouve conversas "sujas" de adolescentes, o barulho deles urinando, o dela mesma, que acaba tendo de fazer suas necessidades ali, algo vem à luz. Ela mesma nem percebe, mas isso fica para o leitor." Kohan diz que seu livro é uma tentativa de investigar como era a relação com o corpo daquelas pessoas que tinham de limitar o corpo de outras.

Estilo
Por mais sério e pesado que seja o tema, Kohan o trata de forma veladamente irônica. Seu modo de narrar é breve e detalhista e seu olhar mantém certa distância cínica das cenas. Algumas passagens, como as que descrevem as aulas de história do colégio, mostram o quão artificiais eram as construções de figuras heróicas a partir de personagens não tão nobres.
"O detalhe é sempre o rastro do mais concreto. Não busco o grande retrato de época, nem creio que seja o mais honesto, no caso desse tipo de busca, que quer expor como a perversidade se manifestava no dia-a-dia", afirma o escritor. Kohan, que é professor de literatura na Universidade de Buenos Aires e na da Patagônia, participa da mesa "Estética do Frio" ao lado de Vitor Ramil e do norte-americano Nathan Englander, que também ambientou seu romance na Argentina no tempo da ditadura. (SYLVIA COLOMBO)


CIÊNCIAS MORAIS
Autor:
Martín Kohan
Tradução: Eduardo Brandão
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 38 (192 págs.)


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