São Paulo, sábado, 28 de junho de 2008

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Crítica/"Sem Sangue"

Alessandro Baricco pisa em solo pouco firme em guerra metafórica de romance

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Pode ser que a guerra de que fala Alessandro Baricco em seu mais recente romance, "Sem Sangue", seja uma guerra metafórica, já que ele mesmo alerta para o fato de que a "escolha de nomes hispânicos deve-se a razões puramente musicais e não pretende sugerir uma inserção temporal ou geográfica dos acontecimentos". Mas não há como negar que soa estranho pensar nessa guerra sem tempo nem espaço, mas carregada de nomes como Mato Rujo e Manuel Roca e Alvarez e Salinas, num lugar deserto e ermo, com um velho casarão abandonado, e não pensar na América hispânica ou em guerras intestinas de independência. Por que a sonoridade dos nomes espanhóis? Será ironia?
Não há como saber, pois não há mais passagens irônicas no livro. Então ficamos nós com esta guerra sem tempo nem espaço e com nomes que lembram Borges e Carpentier. E, assim como ocorre com os nomes, ocorrem também outros desconfortos com esse romance inegavelmente bem escrito. Por que escrever sobre uma guerra à la Hemingway, em pleno século 21, com algumas alterações narrativas e sintáticas de difícil compreensão, que parecem imiscuir-se na temática antiga de forma algo gratuita?
O romance fala de uma menina, Nina, que é trancada num alçapão durante um tiroteio em que são mortos seu pai e seu irmão. O matador que a descobre, Tito, é aquele que a salva, pois não revela seu paradeiro a ninguém mais. Décadas depois de muito sofrimento, eles se reencontram, e surge a questão belíssima sobre o estranho vínculo que as vítimas parecem precisar manter com os seus carrascos.
Afinal, Tito é carrasco ou salvador? Matou seu pai e irmão, mas a salvou e confessa nunca ter sentido tanta paz como quando a viu recolhida naquele alçapão, em formato de concha, com sua saia pregueada e exata.
O momento do encontro entre um possível assassino e sua vítima e os imprevistos que podem surgir daí são mesmo decisivos (se não for em Hollywood, onde tudo parece mais previsível): o vilão pode ver a si mesmo como nunca antes, a vítima pode querer morrer, a morte pode ser melhor do que a vida. E, sem dúvida, o momento em que surge a possibilidade de vingar-se também é revelador.

Guerra contra o tempo
A vingança pode não fazer mais sentido; o objeto da vingança pode ser uma pessoa completamente mudada, que também pode ter coisas a ensinar. Assumindo, então, que se trata de uma guerra metafórica, a guerra de cada um com o transcorrer do tempo, com o momento da morte, com a própria história e com os momentos que a definem (afinal, todos sabemos que a vida de um homem é determinada por alguns poucos instantes), por que o jeito de guerra revolucionária, por que os detalhes do casarão em chamas, por que o ex-combatente que agora é dono de uma casa lotérica?
Muitos romances são bons exatamente por serem inclassificáveis. Mas a dificuldade em classificar esta narrativa não concorre exatamente para sua qualidade. Trata-se de uma história em que nem a linguagem (ousada, mas não muito), nem a temática (já lida em vários outros romances) parecem pisar em algum solo firme. Um livro que não está nem lá nem cá e sem a graça de uma instabilidade proposital. Como se fosse um autor que domina plenamente a técnica da escrita e a utiliza com destreza e competência. Mas a literatura é, felizmente, bem mais do que isso.


SEM SANGUE
Autor:
Alessandro Baricco
Tradução: Rosa Freire d'Aguiar
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 29 (88 págs.)
Avaliação: regular


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