São Paulo, quarta-feira, 28 de julho de 2004

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O senhor do império

Aos 95, cineasta Manoel de Oliveira filma o mito do rei Sebastião e é homenageado em Veneza

SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

"O movimento é uma constante. As horas passam sobre tudo o que parece parado. Tempo é também movimento. Bem como palavra e pensamento são também imagem."
O cineasta português Manoel de Oliveira fala sobre tempo e imagem com a autoridade de quem observa a passagem dos dias desde 1908 e faz da produção de imagens sua rotina há oito décadas.
Mais velho diretor em atividade, Oliveira, 95, diz não ser "modelo para ninguém", por ainda estar "a aprender segredos da arte do cinema, como um modesto aluno".
É, porém, na condição de mestre que ele receberá, na 61ª Mostra de Veneza (1/9 a 11/9), o Leão de Ouro pelo conjunto da obra (24 longas). No festival, estreará "O Quinto Império", filme em que aborda o sebastianismo, pelos enfoques "histórico, humano e mítico". Da ilha de Porto Santo, onde passa férias antes de retomar o trabalho do novo longa, Oliveira deu a seguinte entrevista à Folha.
 

Folha - O sr. começou a carreira como ator e se diz avesso à ciência aplicada. O que o seduziu a passar para trás das câmeras?
Manoel de Oliveira -
Principiei como ator por me julgar incapaz de ser realizador ou argumentista. No entanto, já por essa altura, ocorriam certas histórias ao meu imaginário. A minha atuação como ator tinha dois sentidos: o de interpretar um personagem e a possibilidade de conhecer por dentro como se passava o trabalho cinematográfico em estúdio.
Não me declaro avesso à ciência aplicada, pois que dela muito tem se beneficiado a humanidade. Declaro-me, isso sim, contra a ciência mal aplicada, como a da bomba atômica e tantas outras coisas que artificializam a vida e destroem a mãe natureza.

Folha - Com que vertente intelectual ou da crítica sua obra, iniciada em 1928, mais bem se comunicou e por qual foi mais incompreendida?
Oliveira -
Já uma vez afirmei que nada há mais consolador para um artista do que ser compreendido na sua obra. Galileu [Galilei (1564-1642)] dizia: "O tempo é pai da verdade e mãe das mentes". Quando este não se casa com aquela, dá filhos degenerados. O pintor [Paul] Klee [1879-1940] não vendeu um só quadro durante a vida. Não deixou por isso de pintar. Há, hoje, na Suíça, um museu com uma enorme quantidade de magníficos quadros seus que são muito apreciados.
O que o levou a pintar sempre não foi a esperança de um futuro museu, mas seu impulso de artista. O pintor pinta pela necessidade de pintar. E, não pintando para agradar, agrada-lhe ser compreendido. O pintor que pinta para agradar trai sua sinceridade, que é a força da sua autenticidade.

Folha - Por que decidiu abordar o sebastianismo em seu próximo filme e com que enfoque o fará? Acha que é "o" tema definidor de Portugal e dos portugueses? Ou este é o seu modo de "viver para contar", na expressão de García Marquez?
Oliveira -
Respeito a obra de García Marquez, embora a conheça mal, como aliás ele me desconhecerá. Ele vive para contar, diz. Eu, como profissional de cinema, conto para viver a minha paixão. O "eu" de quem quer que seja não pode deixar de estar presente sempre que seja ele a falar do que quer que seja fora dele. Mas torna-se um outro sempre que fala de si. [O filme] "O Quinto Império" não é meu nem de Portugal. É, sim, um dos mitos universais. Foi de ontem, é de hoje e será de amanhã. O enfoque é o histórico, o humano e o mítico.

Folha - O sr. vê na nova geração de cineastas portugueses disposição de tratar sua obra como referência a ser seguida ou contestada?
Oliveira -
Eu não sirvo de modelo a ninguém, pois ainda estou a aprender segredos da arte do cinema, como um modesto aluno do cinematógrafo.

Folha - Quando filma com seu neto, Ricardo Trepa, sente que está se eternizando na arte e na vida?
Oliveira -
Sinto exatamente o mesmo que quando filmo com qualquer outro ator. Essa coisa de sentimento eternizante simultâneo na arte e na vida é coisa muito sua. Não me diz respeito.

Folha - A produção digital, pela capacidade de multiplicar o acesso à realização de filmes, fará no cinema transformação semelhante à passagem do silencioso para o sonoro ou à introdução da cor?
Oliveira -
Hoje confunde-se o privado e o público; o que pertence ao mundo solitário com o que pertence ao mundo social. A fotografia não destronou a pintura. Por que haveria o digital de destronar essa invenção extraordinária do final do século 19? Essa invenção tornou-se uma arte social? Os vídeos e os digitais podem favorecer as técnicas do cinema, mas são de natureza privada, como o é o livro, sendo este, porém, extraordinariamente mais rico.


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