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O senhor do império
Aos 95, cineasta Manoel de Oliveira filma o mito do rei Sebastião e é homenageado em Veneza
SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL
"O movimento é uma constante. As horas passam sobre tudo o
que parece parado. Tempo é também movimento. Bem como palavra e pensamento são também
imagem."
O cineasta português Manoel de
Oliveira fala sobre tempo e imagem com a autoridade de quem
observa a passagem dos dias desde 1908 e faz da produção de imagens sua rotina há oito décadas.
Mais velho diretor em atividade,
Oliveira, 95, diz não ser "modelo
para ninguém", por ainda estar "a
aprender segredos da arte do cinema, como um modesto aluno".
É, porém, na condição de mestre que ele receberá, na 61ª Mostra
de Veneza (1/9 a 11/9), o Leão de
Ouro pelo conjunto da obra (24
longas). No festival, estreará "O
Quinto Império", filme em que
aborda o sebastianismo, pelos enfoques "histórico, humano e mítico". Da ilha de Porto Santo, onde
passa férias antes de retomar o
trabalho do novo longa, Oliveira
deu a seguinte entrevista à Folha.
Folha - O sr. começou a carreira
como ator e se diz avesso à ciência
aplicada. O que o seduziu a passar
para trás das câmeras?
Manoel de Oliveira - Principiei
como ator por me julgar incapaz
de ser realizador ou argumentista.
No entanto, já por essa altura,
ocorriam certas histórias ao meu
imaginário. A minha atuação como ator tinha dois sentidos: o de
interpretar um personagem e a
possibilidade de conhecer por
dentro como se passava o trabalho cinematográfico em estúdio.
Não me declaro avesso à ciência
aplicada, pois que dela muito tem
se beneficiado a humanidade. Declaro-me, isso sim, contra a ciência mal aplicada, como a da bomba atômica e tantas outras coisas
que artificializam a vida e destroem a mãe natureza.
Folha - Com que vertente intelectual ou da crítica sua obra, iniciada
em 1928, mais bem se comunicou e
por qual foi mais incompreendida?
Oliveira - Já uma vez afirmei que
nada há mais consolador para um
artista do que ser compreendido
na sua obra. Galileu [Galilei (1564-1642)] dizia: "O tempo é pai da
verdade e mãe das mentes".
Quando este não se casa com
aquela, dá filhos degenerados. O
pintor [Paul] Klee [1879-1940]
não vendeu um só quadro durante a vida. Não deixou por isso de
pintar. Há, hoje, na Suíça, um museu com uma enorme quantidade
de magníficos quadros seus que
são muito apreciados.
O que o levou a pintar sempre
não foi a esperança de um futuro
museu, mas seu impulso de artista. O pintor pinta pela necessidade de pintar. E, não pintando para
agradar, agrada-lhe ser compreendido. O pintor que pinta para agradar trai sua sinceridade,
que é a força da sua autenticidade.
Folha - Por que decidiu abordar o
sebastianismo em seu próximo filme e com que enfoque o fará? Acha
que é "o" tema definidor de Portugal e dos portugueses? Ou este é o
seu modo de "viver para contar",
na expressão de García Marquez?
Oliveira - Respeito a obra de
García Marquez, embora a conheça mal, como aliás ele me desconhecerá. Ele vive para contar, diz.
Eu, como profissional de cinema,
conto para viver a minha paixão.
O "eu" de quem quer que seja não
pode deixar de estar presente
sempre que seja ele a falar do que
quer que seja fora dele. Mas torna-se um outro sempre que fala
de si. [O filme] "O Quinto Império" não é meu nem de Portugal.
É, sim, um dos mitos universais.
Foi de ontem, é de hoje e será de
amanhã. O enfoque é o histórico,
o humano e o mítico.
Folha - O sr. vê na nova geração
de cineastas portugueses disposição de tratar sua obra como referência a ser seguida ou contestada?
Oliveira - Eu não sirvo de modelo a ninguém, pois ainda estou a
aprender segredos da arte do cinema, como um modesto aluno
do cinematógrafo.
Folha - Quando filma com seu neto, Ricardo Trepa, sente que está se
eternizando na arte e na vida?
Oliveira - Sinto exatamente o
mesmo que quando filmo com
qualquer outro ator. Essa coisa de
sentimento eternizante simultâneo na arte e na vida é coisa muito
sua. Não me diz respeito.
Folha - A produção digital, pela
capacidade de multiplicar o acesso
à realização de filmes, fará no cinema transformação semelhante à
passagem do silencioso para o sonoro ou à introdução da cor?
Oliveira - Hoje confunde-se o
privado e o público; o que pertence ao mundo solitário com o que
pertence ao mundo social. A fotografia não destronou a pintura.
Por que haveria o digital de destronar essa invenção extraordinária do final do século 19? Essa invenção tornou-se uma arte social?
Os vídeos e os digitais podem favorecer as técnicas do cinema,
mas são de natureza privada, como o é o livro, sendo este, porém,
extraordinariamente mais rico.
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