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São Paulo, quinta-feira, 28 de agosto de 2003

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ERUDITO

Meneses e Pressler fazem ouvir o silêncio da música

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

"Foi uma maratona", dizia sorridente Antonio Meneses, ao final do segundo concerto, terça-feira no Cultura Artística. O pianista Menahem Pressler e ele acabavam de tocar a integral da obra para violoncelo e piano de Beethoven (1770-1827) -cinco sonatas e três ciclos de variações, divididos em duas noites. Para descansar, tocaram Debussy e Brahms.
Intérpretes desse porte provocam até algum masoquismo em outros músicos: nunca se vai tocar como eles. Mas a música, afinal, nos livra disso também. Um violoncelista como Meneses confirma a idéia do ensaísta Edward Said (em seu livro mais recente, "Reflexões sobre o Exílio"), de que há um efeito utópico na interpretação. A música atinge, ou aponta, para uma dimensão ideal; e a gente vai junto na grandeza.
De sua parte, o pianista Menahem Pressler, chegando aos 80 anos, parece habitante honorário de lá. Minúsculo e espevitado, ao lado do grandalhão bonachão, ele toca com o corpo todo e nunca está menos do que inteiro na música. Quase 50 anos depois de fundar o Trio Beaux Arts (em 1955), continua fazendo Beethoven como se fosse uma nova paixão. Tudo é substância, tudo é fantasia.
Vai comemorar os 80 no dia 16 de dezembro: aniversário de Beethoven, também. Que, entre tantas invenções, inventou a sonata para violoncelo e piano. A nš 1 (op. 5/1) é de um arrojo incrível. Desde a introdução -bem lenta, cheia de irregularidades métricas e harmônicas-, a precursora arte mozartiana está sendo explodida de dentro. Para entender como Meneses e Pressler tocaram essa sonata (na terça), era preciso ter escutado a nš 2 (que fizeram um dia antes). Ali, a própria divisão de movimentos não tinha mais distinção real: dois ou três? Se a platéia aplaudiu errado, tinha bons motivos para isso.
No centro geométrico de tudo, ficou a "Sonata nš 3, op. 69". É uma peça do período médio da carreira do compositor. Ali o estilo clássico se recompõe em outras bases, a partir da exploração "orgânica" dos elementos da composição.
Exemplo: uma simples segunda maior no piano, pontuando a melodia do violoncelo, no segundo movimento. Ou os acentos trocados. Não seriam música antes de Beethoven. Ou ainda, com especial ênfase, ou mais propriamente, antiênfase, do jeito como esses dois tocaram, as cenas de suspensão, a expectativa sustentada como expectativa, num lusco-fusco entre "piano" (suave) e "pianíssimo". E a última cadência, dominante-tônica, como quem bate a porta, sem barulho.
Imagens do concerto: Menahem Pressler acabando uma frase, a mão gorda bailando para fora do teclado, a boca aberta, os olhos vivos voltados para Antonio Meneses. O violoncelista serrando a quarta corda e balançando a cabeça; depois recomposto, mas com a cara vermelha do esforço, até se acomodar em melodia.
As variações são peças menores, mas não de menor interesse. À luz do resto, Meneses tocou as duas séries de variações sobre temas de "A Flauta Mágica" com intensidades de exegeta. Foi um Beethoven distante do pós-modernismo corrente (o compositor desconstrutor); mas também não era seu inimigo. Era um pai.
Para o final ficou a "Sonata nš 5, op. 102/2". Só o "Adagio" já valeria a noite. Que registro afetivo era esse? Em momentos assim, a música soa do outro lado, entreouvida apenas de cá. Em momentos assim, a música é um silêncio, que nos ensina, afinal, a ouvir.


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