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ERUDITO
Meneses e Pressler fazem ouvir o silêncio da música
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
"Foi uma maratona", dizia
sorridente Antonio Meneses, ao final do segundo concerto,
terça-feira no Cultura Artística. O
pianista Menahem Pressler e ele
acabavam de tocar a integral da
obra para violoncelo e piano de
Beethoven (1770-1827) -cinco
sonatas e três ciclos de variações,
divididos em duas noites. Para
descansar, tocaram Debussy e
Brahms.
Intérpretes desse porte provocam até algum masoquismo em
outros músicos: nunca se vai tocar como eles. Mas a música, afinal, nos livra disso também. Um
violoncelista como Meneses confirma a idéia do ensaísta Edward
Said (em seu livro mais recente,
"Reflexões sobre o Exílio"), de
que há um efeito utópico na interpretação. A música atinge, ou
aponta, para uma dimensão ideal;
e a gente vai junto na grandeza.
De sua parte, o pianista Menahem Pressler, chegando aos 80
anos, parece habitante honorário
de lá. Minúsculo e espevitado, ao
lado do grandalhão bonachão, ele
toca com o corpo todo e nunca está menos do que inteiro na música. Quase 50 anos depois de fundar o Trio Beaux Arts (em 1955),
continua fazendo Beethoven como se fosse uma nova paixão. Tudo é substância, tudo é fantasia.
Vai comemorar os 80 no dia 16
de dezembro: aniversário de Beethoven, também. Que, entre tantas invenções, inventou a sonata
para violoncelo e piano. A nš 1
(op. 5/1) é de um arrojo incrível.
Desde a introdução -bem lenta,
cheia de irregularidades métricas
e harmônicas-, a precursora arte mozartiana está sendo explodida de dentro. Para entender como
Meneses e Pressler tocaram essa
sonata (na terça), era preciso ter
escutado a nš 2 (que fizeram um
dia antes). Ali, a própria divisão
de movimentos não tinha mais
distinção real: dois ou três? Se a
platéia aplaudiu errado, tinha
bons motivos para isso.
No centro geométrico de tudo,
ficou a "Sonata nš 3, op. 69". É
uma peça do período médio da
carreira do compositor. Ali o estilo clássico se recompõe em outras
bases, a partir da exploração "orgânica" dos elementos da composição.
Exemplo: uma simples segunda
maior no piano, pontuando a melodia do violoncelo, no segundo
movimento. Ou os acentos trocados. Não seriam música antes de
Beethoven. Ou ainda, com especial ênfase, ou mais propriamente, antiênfase, do jeito como esses
dois tocaram, as cenas de suspensão, a expectativa sustentada como expectativa, num lusco-fusco
entre "piano" (suave) e "pianíssimo". E a última cadência, dominante-tônica, como quem bate a
porta, sem barulho.
Imagens do concerto: Menahem Pressler acabando uma frase,
a mão gorda bailando para fora
do teclado, a boca aberta, os olhos
vivos voltados para Antonio Meneses. O violoncelista serrando a
quarta corda e balançando a cabeça; depois recomposto, mas com a
cara vermelha do esforço, até se
acomodar em melodia.
As variações são peças menores,
mas não de menor interesse. À luz
do resto, Meneses tocou as duas
séries de variações sobre temas de
"A Flauta Mágica" com intensidades de exegeta. Foi um Beethoven
distante do pós-modernismo corrente (o compositor desconstrutor); mas também não era seu inimigo. Era um pai.
Para o final ficou a "Sonata nš 5,
op. 102/2". Só o "Adagio" já valeria a noite. Que registro afetivo era
esse? Em momentos assim, a música soa do outro lado, entreouvida apenas de cá. Em momentos
assim, a música é um silêncio, que
nos ensina, afinal, a ouvir.
Avaliação:
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