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CONTARDO CALLIGARIS
Danos, compensações e revolta
Exatamente 40 anos
atrás, em 28 de agosto de
1963, Martin Luther King Jr. pronunciou seu discurso mais famoso, "Eu Tive um Sonho", em que
imaginava um mundo sem segregação racial.
Nestes dias, numa Corte Federal de Chicago, Illinois, EUA, uma
dúzia de americanos de origem
africana, descendentes de escravos, pedem reparação a algumas
grandes companhias que, no século 19, lucraram com a escravatura. Trata-se de empresas que se
serviram de trabalho escravo, financiaram outras que empregavam escravos ou faziam seguros
para navios negreiros.
Como compensação, é pedido
que elas reconheçam publicamente sua culpa e criem um fundo que proporcione e administre
serviços de saúde, moradia e educação para a população afro-americana.
Deixando os argumentos legais
aos advogados, como situar-se
nessa história?
Um exemplo mencionado pelo
"Boston Globe" de domingo passado: Hannah Hurdle Toomey,
71, do Estado de Illinois, narra
que seu pai, Andrew Hurdle
(morto em 1935), aos dez anos de
idade, foi leiloado a um fazendeiro do Texas.
De fato, muitos afro-americanos contam um escravo ou uma
escrava entre seus ascendentes
próximos, a três gerações de distância. A coisa não pode ser diferente para os afro-brasileiros. Em
suma, o dano da escravatura não
é muito remoto. Faz sentido pensar que ele ainda acarrete efeitos
na vida dos descendentes que hoje exigem reparação.
Além disso, tenho uma simpatia imediata por qualquer movimento que proponha ampliar os
limites habituais da responsabilidade jurídica e moral.
Acho divertido (e violentamente subversivo) o projeto dos anárquicos americanos e canadenses
que querem abolir a responsabilidade limitada, de forma que os
acionistas de uma empresa sejam
civil e penalmente responsáveis
pelos atos da companhia da qual
adquirem uma parte, por mínima que seja. Revolução moral: na
hora de comprar ações, antes de
consultar perspectivas e resultados financeiros, seria preciso debruçar-se sobre as consequências
jurídicas das operações das empresas nas quais investimos nossa
poupança.
Da mesma forma, acharia ótimo que quem roubasse dinheiro
público respondesse, por exemplo,
pelo homicídio culposo dos doentes e dos acidentados que seriam
salvos caso a assistência sanitária
dispusesse de meios melhores.
Em suma, simpatizo com a
queixa de Chicago.
Ao mesmo tempo, impõe-se
uma dupla constatação.
1) Encontro cada vez mais sujeitos que se proclamam injustiçados ou injustiçadas. Eles não inventam nada, alguma injustiça
lhes foi feita mesmo: um sócio os
arruinou, um cônjuge os traiu e
abandonou, um pai os seviciou. O
que distingue esses sujeitos não é
o caráter excepcional dos maus-tratos que sofreram, mas o fato de
que se definem pela injustiça da
qual foram vítimas: nada os interessa, nada os mobiliza que não
possa ser contabilizado como ressarcimento de perdas do passado.
Paradoxo: só pedem compensação, mas declaram que não há
compensação que possa abolir o
dano sofrido. Claro, se pudessem
ser indenizados, deveriam mudar
radicalmente seu jeito de ser, e
ninguém gosta de abandonar sua
neurose.
Os injustiçados são, desse ponto
de vista, perfeitamente adequados aos tempos, ou seja, ao espírito da sociedade de consumo: na
forma de dano irreparável, eles
cultivam uma insatisfação que
nada é capaz de esgotar, mas não
param de acreditar que algum
bem possa um dia compensar
adequadamente suas perdas.
Quando aluga um amigo ou
um terapeuta, o injustiçado encontra, geralmente, dois tipos de
resposta. Um interlocutor pode
tentar convencê-lo de que a falta
(no caso, a injustiça sofrida) é,
por assim dizer, originária, constitutiva do ser humano e da ordem do mundo: nada contrabalançará seu dano, mostre sua maturidade pela aceitação. Outro interlocutor o exorta a ir em frente:
não pode recuperar sua fortuna
ou a juventude sacrificada a
quem não o amava? Pois é, coloque o pé no acelerador, toque
uma música legal, esqueça o dano
e console-se com o que vier.
Claro, nada funciona: a neurose
do espírito dos tempos exige os
dois termos, falha irreparável e
espera de que algo compense.
2) Os movimentos que, desde os
anos 60, vêm mudando a cara de
nossa sociedade adotam frequentemente, nas últimas duas décadas, o estilo dos injustiçados: enveredam pela contabilidade impossível das reparações.
Não conheço os cidadãos que
promovem a queixa de Chicago.
Não sei se eles se percebem como
injustiçados no sentido que especifiquei.
Mas penso no gesto de Rosa
Parks, a costureira negra que,
num dia de 1955, em Montgomery, Alabama, sentou-se nas fileiras do ônibus reservadas aos
brancos e não quis mais se mexer.
Ela não pedia compensação por
danos sofridos nem, a bem dizer,
lutava por um futuro diferente. A
repercussão de seu ato (que iniciou o movimento americano dos
direitos civis e convocou o jovem
Martin Luther King para a luta)
deve-se, provavelmente, ao fato
seguinte: Rosa Parks não cobrou
créditos passados nem futuros,
apenas revoltou-se, ou seja, autorizou-se a viver o presente que
queria e que lhe parecia justo.
Com isso, transformou sua vida e
o mundo.
ccalligari@uol.com.br
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