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Tradução preserva idiossincrasias
ESPECIAL PARA A FOLHA
Inicialmente inspirada pelas gírias de mods e rockers, a linguagem "nadsat" de "Laranja Mecânica" acabou sendo recriada por
Anthony Burgess depois de uma
viagem a Leningrado (hoje São
Petersburgo). Com receio que os
termos roqueiros caducassem rapidamente, Burgess inventou
neologismos calcados em palavras russas misturadas ao "cockney" (o modo de falar da classe
operária britânica). Essa operação
criativa transformou o trabalho
do tradutor Fábio Fernandes em
um exercício semelhante ao praticado na tradução de poesia e que
o ocupou por longos nove meses.
Publicado pela primeira vez no
Brasil há 30 anos pela extinta editora Artenova, a prosódia de "Laranja..." oscila entre a estranheza
dos termos "nadsat" e o inglês
"shakesperiano ou bíblico" identificado pelo crítico Blake Morrison. Fernandes diz que "há muitas diferenças entre as duas traduções. Primeiro, porque cada tradutor tem um universo lingüístico pessoal, e segundo, porque se
passaram mais de 30 anos entre as
duas traduções e, por melhor que
uma tradução seja, ela sempre
corre o risco de ficar datada".
Como a tradução da edição anterior do livro é da década de 70,
período em que era comum aportuguesar estrangeirismos, Fernandes adotou procedimentos
mais condizentes com os dias
atuais. "Eu gosto muito da tradução do Nelson Dantas, mas acho
que ela "datou" justamente no
aportuguesamento da linguagem
"nadsat"." E exemplifica: ""Veck"
(sujeito) foi traduzido por ele como "veque", ao passo que eu optei
por "vek". Nenhuma das duas formas de traduzir o termo está errada, já que hoje em dia é bastante
normal usar os termos no original, como "sale" ou "streetwear".
No caso acima, só retirei a letra c,
porque foneticamente não faz diferença e deixar a terminação em
k transmite ao leitor uma impressão de "russificação" que acho importante preservar".
A nova edição de "Laranja Mecânica", além do prefácio e de artigo elucidando a operação tradutória, traz também um glossário
"não autorizado" da linguagem
"nadsat". O desejo de Anthony
Burgess era que o leitor submergisse sem bóia salva-vidas no
idioleto fora-da-lei de Alex e sua
gangue, a fim de que tal estranhamento o transportasse à metrópole ultraviolenta do futuro onde
se passa a história. O escritor
americano William Burroughs,
um criador de paisagens bizarras
e experimentador de novas formas, assinou embaixo: "Eu não
conheço nenhum outro escritor
que tenha feito tanto com a linguagem quanto Burgess fez". Partindo de Burroughs, um autor
que acreditava na palavra como
um vírus usado no controle do
poder, dá para confiar.
(JRT)
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