São Paulo, sábado, 28 de agosto de 2004

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RODAPÉ

Uma ponte para a Idade do Ouro da poesia portuguesa

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Em 2002, foi lançada em Portugal uma antologia de poesia intitulada "Século de Ouro". Reunindo poemas de 47 autores, cada um seguido de um texto crítico, é uma obra da maior importância. O título, porém, tem um sentido bastante irônico: remete ao "siglo de oro" da literatura espanhola (Góngora, Calderón de la Barca, Cervantes), quando na verdade o volume contempla exclusivamente poetas do século 20.
Ou seja, ao batizarem a antologia de "Século de Ouro", os organizadores Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra sugerem que só recentemente, com autores como Jorge de Sena, Mário Cesariny e Alexandre O'Neil, a poesia portuguesa atingiu um apogeu comparável ao da rival ibérica.
E, se esse "atraso" diz muito sobre o lugar periférico que Portugal ocupa na Europa, também diz respeito ao descompasso que marca a recepção da literatura portuguesa no Brasil. Afinal, tirando nomes obrigatórios como Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, quem conhece a poesia de Eugénio Andrade ou Sophia de Mello Breyner Andresen?
Só isso seria suficiente para mostrar a importância da coleção Ponte Velha, que acaba de ser criada pela editora Escrituras. Coordenado pelo gaúcho Carlos Nejar e pelo poeta António Osório (nascido em Setúbal), o selo é dedicado à literatura portuguesa contemporânea e traz três coletâneas marcadas pelo traço que melhor distingue a poesia lusitana: a discursividade.
Numa generalização grosseira, pode-se dizer que nossa tradição modernista "realiza" de maneira mais plena os valores poéticos que prega: o coloquialismo de Manuel Bandeira ou Francisco Alvim se coloca como evidência sensível anterior a qualquer programa estético; a negatividade e o antilirismo de João Cabral de Melo Neto são perceptíveis primeiramente nas arestas minerais de seus versos e só num segundo momento se explicitam em poemas metalingüísticos.
Já a poesia portuguesa (ao menos nos livros aqui em questão) parece ser mais evocativa: convoca experiências poéticas transformadoras -mas, no plano da expressão, não se despede do tom solene. Isso é particularmente identificável em "Por Dentro do Fruto a Chuva", que reúne textos de diversos livros de Nuno Júdice.
Nos versos emblemáticos de "Metafísica", por exemplo, o escritor diz que o poema "não tem obrigatoriamente de dizer tudo. A sua essência reside no fragmento de um absoluto que algum deus levou consigo". No entanto, nada é menos fragmentário ou elíptico do que essa poética que nos fala sempre dos "confins da eternidade", do "cair de pálpebras na margem de um êxtase", dos "dedos da alma no mar obscuro do desejo".
A incidência da idéia de abstração ("vegetação abstracta", "pontes sem arcos, abstractas como um arco-íris") dá a tônica de uma imagética que pretende fazer de cada objeto um trampolim para a transcendência -sendo sintomático que Júdice grafe a palavra "Poesia" com "p" maiúsculo, como se a voz do poeta tivesse, por si só, o poder de transformar o que enuncia em entidade superior.
Em "Soletrar o Dia", de Rosa Alice Branco, esse mesmo "eu poético" inspirado transpira em versos nos quais o mais simples gesto é uma semeadura, em que o poeta que relembra o passado se equipara à criança que, isolada no sótão da casa materna (lugar-comum do ultra-romantismo), escuta "a melodia chegando pelas clarabóias de verão entre as velharias cheias de promessas".
É em "Caronte e Memória", portanto, que a promessa de uma Idade do Ouro da literatura lusitana está mais perto de se cumprir: com referências ao barqueiro do inferno (Caronte) e ao rio do esquecimento (Lete), Pedro Tamen atualiza a poesia clássica no âmbito de uma mitologia moderna, ao mesmo tempo pessoal e hermética, com aquele travo de austeridade e lirismo que caracteriza a melhor poesia portuguesa.


Caronte e Memória
    
Autor: Pedro Tamen
Quanto: R$ 18 (104 págs.)

Por Dentro do Fruto a Chuva
   
Autor: Nuno Júdice
Quanto: R$ 23 (160 págs.)

Soletrar o Dia
  
Autor: Rosa Alice Branco
Quanto: R$ 18 (112 págs.)
Editora: Escrituras



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