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RODAPÉ
Uma ponte para a Idade do Ouro da poesia portuguesa
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Em 2002, foi lançada em Portugal uma antologia de poesia
intitulada "Século de Ouro". Reunindo poemas de 47 autores, cada
um seguido de um texto crítico, é
uma obra da maior importância.
O título, porém, tem um sentido
bastante irônico: remete ao "siglo
de oro" da literatura espanhola
(Góngora, Calderón de la Barca,
Cervantes), quando na verdade o
volume contempla exclusivamente poetas do século 20.
Ou seja, ao batizarem a antologia de "Século de Ouro", os organizadores Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra sugerem que só
recentemente, com autores como
Jorge de Sena, Mário Cesariny e
Alexandre O'Neil, a poesia portuguesa atingiu um apogeu comparável ao da rival ibérica.
E, se esse "atraso" diz muito sobre o lugar periférico que Portugal ocupa na Europa, também diz
respeito ao descompasso que
marca a recepção da literatura
portuguesa no Brasil. Afinal, tirando nomes obrigatórios como
Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, quem conhece a poesia
de Eugénio Andrade ou Sophia de
Mello Breyner Andresen?
Só isso seria suficiente para
mostrar a importância da coleção
Ponte Velha, que acaba de ser
criada pela editora Escrituras.
Coordenado pelo gaúcho Carlos
Nejar e pelo poeta António Osório (nascido em Setúbal), o selo é
dedicado à literatura portuguesa
contemporânea e traz três coletâneas marcadas pelo traço que melhor distingue a poesia lusitana: a
discursividade.
Numa generalização grosseira,
pode-se dizer que nossa tradição
modernista "realiza" de maneira
mais plena os valores poéticos
que prega: o coloquialismo de
Manuel Bandeira ou Francisco
Alvim se coloca como evidência
sensível anterior a qualquer programa estético; a negatividade e o
antilirismo de João Cabral de Melo Neto são perceptíveis primeiramente nas arestas minerais de
seus versos e só num segundo
momento se explicitam em poemas metalingüísticos.
Já a poesia portuguesa (ao menos nos livros aqui em questão)
parece ser mais evocativa: convoca experiências poéticas transformadoras -mas, no plano da expressão, não se despede do tom
solene. Isso é particularmente
identificável em "Por Dentro do
Fruto a Chuva", que reúne textos
de diversos livros de Nuno Júdice.
Nos versos emblemáticos de
"Metafísica", por exemplo, o escritor diz que o poema "não tem
obrigatoriamente de dizer tudo. A
sua essência reside no fragmento
de um absoluto que algum deus
levou consigo". No entanto, nada
é menos fragmentário ou elíptico
do que essa poética que nos fala
sempre dos "confins da eternidade", do "cair de pálpebras na margem de um êxtase", dos "dedos da
alma no mar obscuro do desejo".
A incidência da idéia de abstração ("vegetação abstracta", "pontes sem arcos, abstractas como
um arco-íris") dá a tônica de uma
imagética que pretende fazer de
cada objeto um trampolim para a
transcendência -sendo sintomático que Júdice grafe a palavra
"Poesia" com "p" maiúsculo, como se a voz do poeta tivesse, por si
só, o poder de transformar o que
enuncia em entidade superior.
Em "Soletrar o Dia", de Rosa
Alice Branco, esse mesmo "eu
poético" inspirado transpira em
versos nos quais o mais simples
gesto é uma semeadura, em que o
poeta que relembra o passado se
equipara à criança que, isolada no
sótão da casa materna (lugar-comum do ultra-romantismo), escuta "a melodia chegando pelas
clarabóias de verão entre as velharias cheias de promessas".
É em "Caronte e Memória",
portanto, que a promessa de uma
Idade do Ouro da literatura lusitana está mais perto de se cumprir:
com referências ao barqueiro do
inferno (Caronte) e ao rio do esquecimento (Lete), Pedro Tamen
atualiza a poesia clássica no âmbito de uma mitologia moderna, ao
mesmo tempo pessoal e hermética, com aquele travo de austeridade e lirismo que caracteriza a melhor poesia portuguesa.
Caronte e Memória
Autor: Pedro Tamen
Quanto: R$ 18 (104 págs.)
Por Dentro do Fruto a Chuva
Autor: Nuno Júdice
Quanto: R$ 23 (160 págs.)
Soletrar o Dia
Autor: Rosa Alice Branco
Quanto: R$ 18 (112 págs.)
Editora: Escrituras
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