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FERREIRA GULLAR
A ilusão do poder
A maior ilusão em que pode
incorrer um homem público
é pensar que o poder que o povo
lhe delegou é seu. Por incrível que
pareça, muito embora seja essa
uma verdade óbvia, não são poucos os políticos que dela se esquecem. Aliás, seria mais correto dizer que poucos são os que dela
não se esquecem.
A Constituição do país afirma
que "todo o poder emana do povo
e em seu nome será exercido".
Não obstante, assim que se vê investido do mandato popular, o
político passa, de imediato, a se
acreditar poderoso, senão -dependendo do grau de lucidez-
todo-poderoso. Sem dúvida, deve-se admitir que, se foi eleito pelo
povo, este lhe transferiu uma porção de seu poder. Portanto é legítimo o político imbuir-se do poder
que lhe foi delegado, mesmo porque, se não o fizer, trairá os seus
eleitores. Quando votamos em alguém para uma função pública, o
que dele esperamos é que exerça o
poder que lhe delegamos para
atuar na solução de problemas da
comunidade. Trata-se, portanto,
de um poder que está condicionado ao uso que o político faz dele.
Se não o exerce visando ao interesse público, trai a delegação que
lhe foi concedida e, assim, o poder
delegado se torna ilegítimo.
Não estou dizendo nenhuma
novidade nem, lamentavelmente,
aludindo a casos excepcionais.
Não me arriscaria a afirmar que
essa é a regra, mas a verdade é
que, no Brasil de hoje, se tornou
espantoso o número de homens
públicos que, em lugar de governar e legislar visando o bem comum, usam do poder que lhe foi
delegado em interesse próprio, seja para enriquecer, seja para usufruir de privilégios.
O Legislativo, no Brasil, é um
exemplo lamentável do uso anômalo do poder popular delegado.
Basta ver os privilégios que deputados, senadores e vereadores se
atribuem. Sob a alegação de que
assim garantem a incorruptibilidade do legislador, usam o dinheiro público para custear despesas que visam assegurar a carreira pessoal de cada um deles. Isso sem falar da corrupção deslavada, do tráfico de influências, do
suborno e do nepotismo. Parecem
ignorar que a função pública exige devoção à comunidade e desprendimento pessoal. Quem deseja enriquecer deve buscar outro
caminho.
Lembro-me de uma reportagem
feita, há alguns anos, sobre a Assembléia Legislativa de Minas
Gerais: o plenário quase sempre
vazio, as comissões paradas, os legisladores ausentes. Vários deles,
pressionados, justificaram a ausência alegando a necessidade de
estarem junto de suas bases... Como se fossem eleitos não para legislar, mas apenas para serem
reeleitos. Há, sem dúvida, exceções e são elas que alimentam
nossa confiança no regime democrático. Mas, para que o regime
não soçobre, urge uma reforma
política profunda, capaz de inibir
as ambições espúrias e assegurar
a punição dos corruptos.
A Câmara Federal não fica
atrás, como se sabe: só funciona,
quando muito, três dias por semana, embora o custo efetivo de
cada deputado chegue a um
montante de R$ 80 mil a R$ 90
mil por mês. Isso sem falar no uso
da própria função legislativa para obter vantagens políticas e pecuniárias, como se vê agora com o
escândalo do "mensalão". Muitos
deputados ganham o direito de
nomear correligionários e parentes para cargos em empresas estatais, que são usados como trunfos
no tabuleiro do poder. Noutras
palavras, é como se a classe política se houvesse apropriado da máquina do Estado, tornando-se
uma casta que paira acima dos
cidadãos. É o que corre na boca
do povo.
Não é muito diferente o que
ocorre com prefeitos, governadores e o presidente da República.
Agora mesmo, no governo Lula,
vimos o número de ministérios
ampliar-se descaradamente para
dar emprego a petistas derrotados
nas urnas, sem levar em conta a
competência deles para o desempenho da função ministerial. Tal
generosidade com o dinheiro público deixa claro que o presidente
se sente dono do país. No caso de
Lula, isso é evidente: considera-se
não só dono do país como "paizão" do povo, que pode agora
chorar em seu ombro e comer em
suas mãos generosas. Sua atitude
em face da crise, negando-se a
prestar contas do descalabro moral a que conduziu o país, mostra
bem a arrogante convicção de
que sua autoridade é inquestionável. O povo o entronizou na
Presidência da República e, embora sejamos todos povo, é como
se nenhum de nós o fosse. Trata-se de uma entidade abstrata que
envolve o presidente numa espécie de aura, que dorme com ele na
cama, que come com ele à mesa
do jantar -enfim, que com ele se
confunde. "O povo sou eu", dirá
talvez para si mesmo.
Ledo engano. Povo não é quem
pinta a cara para disfarçar a conivência com o poder corrupto.
No Brasil de agora, povo é o brasileiro que, sentindo-se ludibriado
e desrespeitado, encarna a indignação da cidadania. A esta altura, quando as pesquisas já indicam o crescente desprestígio de
Lula na opinião pública, pode ser
que lhe corra um frio pela espinha. Talvez comece a perceber
que seu poder -como o de qualquer outro homem público- é
quase uma ilusão: pode esvanecer-se, de um momento para o
outro, como a neblina matinal
que a luz do sol dissipa.
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