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BERNARDO CARVALHO
Exterminador do passado
O diário, que antes se mantinha restrito ao privado, já é concebido para publicação
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AS CELEBRIDADES e os reality
shows fazem parte do mesmo
universo dos blogs pessoais e
de uma literatura que, originária e
devedora dos blogs, foi reduzida a
crônica, expressão da opinião e da
experiência pessoal.
A exemplo da encenação pública
da intimidade, o eu dos blogs é uma
projeção que se realiza numa segunda realidade, numa rede de inter-relacionamentos constituída por confrarias cujos parâmetros são os seus
próprios limites, o elogio do igual, a
reiteração do mesmo e a execração
do diferente.
Nesse universo, um autor como
Henry James (1843-1916) só pode
ser ignorado ou percebido como um
exterminador enviado pelo passado,
pois celebra uma literatura que é,
antes de mais nada, criação, invenção e reflexão. O protagonista da novela "A Fera na Selva", recém-publicada pela Cosac Naify na tradução
de José Geraldo Couto, é um homem autocentrado, que passa batido pela vida e cuja tragédia é fruto da
sua autoconsciência tardia.
Embora sustentado unicamente
pelo relato pessoal, o eu ensimesmado dos blogs também sofre da falta
de experiência real, e a única diferença em relação ao personagem
criado por James é que para ele não
haverá tragédia, pois tampouco há
autoconsciência ou reflexão possível, já que está demasiado ocupado
com a expressão pública de si mesmo. O diário, antes um gênero que se
mantinha, até segunda ordem, restrito à dimensão do privado, agora já
é concebido para publicação.
Henry James professa a idéia de
que a própria literatura é reflexão
-e não apenas expressão de si ou de
geração. Ela pressupõe invenção e
transcendência; não é apenas relato
ou crônica. O não-dito, por exemplo,
que é um dos recursos dramáticos e
romanescos mais fundamentais dos
livros de James, é inconcebível dentro do princípio exibicionista da encenação pública do eu, na qual tudo
deve ser dito e mostrado.
"A Fera na Selva" é, de certo modo, uma alegoria do amor como
compartilhamento de um segredo
que não se diz e suposição de outros
que não se descobrem, um jogo de
não-ditos sob a constante ameaça da
morte e da perda.
Um homem reencontra uma mulher da qual ele mal se lembra, embora, segundo ela, tivesse lhe revelado no passado um segredo íntimo. A
partir do reencontro e dessa alusão
se estabelece entre os dois uma relação de profunda e íntima cumplicidade, na qual tudo é compreendido
por meias palavras. A frase tortuosa
de James se ajusta com perfeição a
essa narrativa em que a informação
é dada por desvios e a linguagem é
um véu que, girando sobre o vazio,
envolve o leitor, construindo por
circunvolução um mistério que ao
mesmo tempo se oculta.
A frase de James cria opacidade e
põe o leitor num lugar análogo ao da
inconsciência e da cegueira do protagonista. A fera na selva, por exemplo, é a imagem que ele faz da impressão que o acompanha pela vida,
uma ameaça iminente e indefinida à
qual ele se sente exposto, como se
uma tragédia estivesse à espreita,
prestes a dar o bote. Por conta do seu
egoísmo, sua relação com a mulher
será muito peculiar e incompleta.
Ao longo da história, os dois se preocupam com o olhar das convenções
e se perguntam sobre o que os outros deverão pensar de uma relação
tão incomum.
Enquanto, no mundo dos reality
shows, o olhar dos outros serve apenas para reiterar o exibicionismo
para o qual não pode haver autoconsciência, nas últimas páginas da
novela de James será pelo olhar do
outro, mas desta vez como sinal de
uma verdade que nada tem a ver
com as convenções, que o protagonista afinal compreenderá qual era a
fera que o espreitava desde sempre.
Todo o texto de James é feito de
ambigüidades e de enganos. O que
está em jogo é o indizível da experiência - o contrário da experiência
dizível. Para tornar isso sensível e
representável, é preciso se pôr pelo
menos um grau acima do relato ou
da encenação da experiência. Esse
grau se chama criação literária.
Nesse ponto, caberia uma nota sobre o projeto gráfico dessa edição. É
um projeto que parece querer traduzir graficamente a opacidade e o fulgor do texto -as páginas vão escurecendo conforme o texto avança, em
tons de prata, até as próprias letras
prateadas quase desaparecerem sobre o fundo cinza.
Em nome de uma originalidade
visual e conceitual do livro como objeto, a legibilidade passa para segundo plano. E de uma forma involuntária, o projeto que pretendia valorizar
a literatura nos deixa com a triste
constatação de que vivemos de fato
num mundo de aparências onde o
texto é o que menos importa.
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