|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
livros
CRÍTICA ROMANCE
"Deus de Caim" revela talento literário ferozmente original
Ricardo Guilherme Dicke compõe denso mosaico de inspiração bíblica
MARÇAL AQUINO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Bons escritores contam
(boas) histórias; grandes escritores criam mundos.
O mato-grossense Ricardo
Guilherme Dicke (1936-2008)
integrou, sempre com modéstia e extremo rigor, o seleto grupo de autores que estabelecem universos próprios
para o transcurso de sua ficção, como a Macondo, de
García Márquez ou a Yoknapatawpha, de Faulkner.
O reino mítico de Dicke
chama-se Pasmoso, lugarejo
de localização incerta nos
confins do Mato Grosso, onde se passa "Deus de Caim",
seu romance de estreia.
Poucos escritores foram
tão aclamados, e ignorados
com igual fervor, quanto Dicke. "Deus de Caim" recebeu o
Prêmio Walmap, atribuído
por um júri do qual faziam
parte Jorge Amado e Guimarães Rosa.
Publicado em 1968, o romance não apenas fincou os
marcos geográficos da literatura de Dicke, mas também
seus marcos estéticos.
ESTILO VIGOROSO
Na trama, que remete de
forma direta à história de
Caim e Abel, os gêmeos Jônatas e Lázaro Amarante, seres
primitivos do sertão do Pasmoso, entram em conflito
quando se apaixonam pela
mesma mulher, Mirina.
Um mundo bruto vem à tona, temperado por intolerância e preconceito.
Na verdade, é a linguagem
o maior personagem da prosa de Dicke. Com um estilo vigoroso e enganosamente
simples, que não esconde em
nenhum momento seu alto
grau de elaboração, ele conduz o leitor para um território
de incertezas.
E compõe um denso mosaico que, aos poucos, revela
os segredos da família Amarante e seus desvios. Romance de linhagem regionalista,
porém a partir de uma sofisticada operação de linguagem. Literatura destinada a
paladares exigentes.
Depois de uma temporada
no Rio, na década de 1960,
Dicke recolheu-se a Cuiabá,
onde até o final da vida dividiu seus interesses entre a literatura e a pintura. A fidelidade ao seu projeto literário
fez com que o escritor nunca
chegasse a grandes públicos.
Nem por isso ele concedeu. Ao contrário: radicalizou ainda mais seus procedimentos e construiu uma obra
que é uma sequência de narrativas caudalosas e invariavelmente premiadas (e negligenciadas), como "Caieira",
"Último Horizonte" e "O Salário dos Poetas", este um catatau de 500 páginas de uma
prosa quase impenetrável.
Por fim, uma menção de
louvor à Letra Selvagem, valente editora de Taubaté, pela ousadia de recolocar
"Deus de Caim" em circulação, oferecendo, a leitores
que busquem um pouco
mais do que mero entretenimento, grande oportunidade
de (re)descoberta de Ricardo
Guilherme Dicke e de sua literatura ferozmente original.
MARÇAL AQUINO é autor de "Cabeça a
Prêmio" e "O Invasor"
DEUS DE CAIM
AUTOR Ricardo Guilherme Dicke
EDITORA Letra Selvagem
QUANTO R$ 40 (400 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo
Texto Anterior: Folha.com Próximo Texto: Ficção/Não ficção Índice
|