São Paulo, terça-feira, 28 de setembro de 2004

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CINEMA

Mostra que presta homenagem ao documentarista americano abre hoje com "Corações e Mentes", no Festival do Rio

Peter Davis expõe o lado obscuro da América

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

Tem início hoje, com o provocante "Corações e Mentes", a mostra "O Documentarista Peter Davis", que o Festival do Rio 2004 dedica ao consagrado jornalista, produtor e realizador americano.
Concebido entre 1972 e 1973 e apresentado pela primeira vez no Festival de Cannes de 1974, onde foi aclamado tanto pela crítica quanto pelo público, "Corações e Mentes" é um dos raros documentários cujas verdades e importância crescem e se solidificam com o passar do tempo.
Não sem razão, a investigação de Davis sobre a Guerra do Vietnã recebeu o Oscar da categoria em 1975. Na obra, o diretor, cujo principal objetivo como cineasta tem sido combater os preconceitos, o racismo e a exclusão social, busca demonstrar que as causas do extenso conflito são intrínsecas à cultura americana: militarismo exacerbado e racismo.
Editado para 110 minutos, de cerca de 200 horas rodadas originalmente, "Corações e Mentes" mostra com leveza e força incidentes anedotas da guerra ao som de música popular americana, além de clipes de filmes de Hollywood, imagens de arquivo e entrevistas de personalidades políticas, ex-combatentes americanos e sobreviventes vietnamitas.
Ele foi, aliás, o primeiro documentário que deu voz ao "inimigo" e explicitou os efeitos nefastos do conflito sobre a população local. Todavia a maior preocupação de Davis é estudar o impacto da experiência dos EUA no Vietnã em sua própria população. Sua meta: estudar os corações e as mentes dos americanos.
A controvérsia em torno do filme foi tamanha que, na entrega do Oscar, Bert Schneider, engajado co-produtor da obra, leu uma "mensagem amigável" da delegação do Governo Revolucionário Provisório vietnamita, que negociava o final do conflito em Paris, a "todos os americanos". Vale lembrar que se trata de um dos períodos mais delicados da história para os americanos.
Mas, como definiu Judith Crist, crítica e professora de escrita analítica da Universidade de Columbia (EUA), "Corações e Mentes" mudou o modo como documentários políticos são realizados.

Defesa dos excluídos
Contudo, o escopo da filmografia de Davis é bem mais amplo, embora a defesa dos excluídos seja seu fio condutor. Desde o início, em 1968, ele mostrou seu talento, com "A Herança da Escravidão" e "Fome na América".
O primeiro interpreta o fenômeno mais vergonhoso da história americana, a escravidão, e estuda suas graves conseqüências, que se perpetuam hoje. Nele descendentes de escravos e de proprietários de escravos surgem para provar que a mentalidade que permitiu o advento da escravatura ainda está bem presente na sociedade contemporânea.
"Fome na América" relata o cotidiano desesperado e desolado de americanos de diferentes origens que vivem à margem do sistema, cujo objetivo é apenas encontrar alimentos para si e para seus filhos. Este, aliás, também constitui a maior dificuldade para aqueles que padecem das agruras da fome: no caso, hispânicos do Texas, negros do Alabama, brancos da Virgínia, indígenas do Arizona. O filme levou o Emmy de melhor documentário de 1978.
Há ainda, na filmografia de Davis, o premiadíssimo "O Pentágono à Venda" (1971), sobre o poder do aparato de propaganda do Departamento da Defesa dos EUA e sua influência sobre o inconsciente coletivo do país, além de filmes sobre John F. Kennedy, Nelson Mandela e o apartheid.
A principal qualidade de Davis é, indubitavelmente, sua capacidade de investigar a consciência nacional dos EUA, compelindo os americanos a perceber suas falhas morais e a reavaliar os valores que permitiram seu advento. E, ao fazê-lo, ele conquista o coração e a mente de seu público.


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