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MARCELO COELHO
Como embelezar São Paulo (e sair ganhando com isso)
Direitos todo mundo tem:
à saúde, à educação, à moradia, à segurança... Verdade é
que essas coisas muitas vezes ficam no papel. Mas há um direito
humano, lembrado por Anatole
France, que até hoje ninguém ousou desrespeitar: o de dormir debaixo da ponte. Eis, frisava o escritor, uma prerrogativa que o Estado assegura "tanto aos mendigos
quanto aos milionários".
Recente iniciativa do prefeito José Serra parece colocar em xeque
essa evidência. Na passagem subterrânea entre a avenida Paulista
e a Doutor Arnaldo, surge uma
verdadeira inovação em termos
de arquitetura pública: a "rampa
antimendigo". Trata-se de um piso inclinado, com superfície áspera, que impede os miseráveis de se
abrigarem no lugar.
Já era um espaço bastante exíguo e disputado. O motorista que
sai da Doutor Arnaldo e avança
por aquela espécie de túnel começa reparando nas pinturas murais
que enfeitam o caminho. Vê simpáticos grafites, figurinhas dançantes, uns ETs sorridentes e, à
medida que o túnel se aprofunda,
toma contato com ótimas reproduções de quadros modernistas:
uma praia de Pancetti, uma paisagem de Tarsila, algumas mulheres de Di Cavalcanti ilustram
aquele buraco urbano.
Quando subimos de novo em direção à Paulista, o vão de parede
disponível para as pinturas diminui; só então, num ângulo espremido entre dois planos de calçada,
é que vemos amontoados alguns
seres humanos entre sacos de lixo,
caixotes desmontados, fardos de
roupa velha e ruínas de um colchão.
Construída como a arquibancada de um imaginário estádio para
ratazanas, a obra da prefeitura
ocupa esse pedaço do túnel, cuidando de desalojar os mendigos
que dormiam por ali. A não ser
que eles insistam em se deitar no
novo plano inclinado, correndo o
risco de rolar até o asfalto, onde
terminariam providencialmente
atropelados. De todo modo, a
rampa ganhou um revestimento
de chapisco, desconfortável o bastante para dissuadi-los da imprudência.
Chapisco? A palavra é demasiado vulgar. O melhor seria chamar
de textura rústica a camada que
recobre as rampas. Fico pensando
de que modo se optou por esse pormenor decorativo. Afinal, não dá
para saber quais os níveis de desconforto necessários para impedir
um mendigo de se deitar onde
quer que seja.
Por que não usar cacos de garrafa? Tudo ganharia um colorido
nostálgico e suburbano, figurando
uma São Paulo de outros tempos.
Ou então pregos, espetos... Ah,
mas aí seria extremismo. Nosso
"dispositivo inclinado de afastamento de população indesejável"
(diapi) não precisa agredir ninguém. Cumpre apenas, silenciosamente, o que a polícia ou a guarda
municipal não poderiam fazer
sem empregar um bocado de violência física.
E ninguém é violento por aqui.
Só eles, é claro, os que se escondem
no subterrâneo.
"Não se trata de rampa antimendigo", protesta com veemência o subprefeito da Sé em carta à
Folha na última segunda. "A
área, como é público e notório,
servia para acoitar delinqüentes
que se misturavam a pessoas que
eventualmente moravam ali,
também elas vítimas da ação criminosa."
Imagino então que as vítimas,
uma vez expulsas do local, estejam agradecendo à prefeitura. Lamento, em todo caso, que se tenha
perdido uma oportunidade rara
de prender delinqüentes: não são
muitos os que se deixam localizar
em endereço fixo, público e notório.
Quem sabe, em vez de um plano
inclinado, a prefeitura não deveria ter construído grades debaixo
do viaduto: uma parceria com o
governo Alckmin criaria ali uma
interessante alternativa prisional.
Seja como for, poderemos apreciar melhor as comoventes réplicas de Portinari que, naquele trecho exato da passagem subterrânea, sofriam a concorrência dos
mendigos reais. Admirem-se, portanto, aqueles esquálidos retirantes em sutis matizes de azul e cinza, corvos voejando em volta e lágrimas saindo aos jorros dos olhos
de crianças famintas. Sabia das
coisas o velho Portinari. Um pouco ultrapassado talvez.
Afinal, a arte engajada está fora
de moda e não condiz com o ritmo pragmático da cidade. A nova
rampa, lembrando uma escultura
abstrata, rigorosa e pura, vem
aludir a períodos ulteriores, menos conteudísticos, de nossa evolução estética. A não ser que represente uma homenagem ao auditório de Niemeyer no parque
Ibirapuera e ao tobogã do Pacaembu. Se não nos atrapalhassem os mendigos, poderíamos
apreciar muitas harmonias ocultas na paisagem paulistana.
Uma dúvida, entretanto. Será
que, apesar de sua austeridade
construtiva, essa rampa não é um
instrumento de autopromoção do
prefeito? Fala-se nele como candidato à Presidência da República. Terá alguém inconscientemente desenhado uma minirrampa do Planalto nos subterrâneos da Paulista? Sem esquecer
que o seu próprio sobrenome sugere, a exemplo da nova obra, algo de escarpado, íngreme, difícil
de subir.
Mas a determinação ascensional da prefeitura não pára por aí.
Lança-se em direção aos postes
da Eletropaulo. Sim, noticia-se a
criação de uma taxa sobre tal
equipamento urbano. O raciocínio é que os postes, sendo coisas
privadas (em especial para os cachorros, aliás), ocupam um lugar
público, as calçadas. Cabe, portanto, uma cobrança. Por que
não?
Juntando uma coisa à outra,
ocorre-me a solução definitiva
para o caso da Paulista: cobrar
imposto dos mendigos. Afinal,
eles se apropriam de um bem público e o utilizam para fins pessoais. Exigindo-lhes uma taxa
módica, conseguiríamos expulsá-los dali sem precisar gastar um
tostão em rampas e chapiscos.
Nada como os mecanismos de
mercado. É o que eu sempre digo.
@ - coelhofsp@uol.com.br
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