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CONTARDO CALLIGARIS
Um filme de amor
O interesse pelo vídeo de Cicarelli revela que somos sobretudo frustrados no amor
À FORÇA de receber links para o
vídeo de Daniella Cicarelli,
acabei dando o clique e assisti
ao filme.
São quatro minutos e meio, editados a partir de duas horas de gravação e entrecortados por subtítulos,
que introduzem diferentes momentos do convívio do casal.
Os subtítulos são em castelhano.
Normal, visto que os fatos aconteceram na Espanha, e o "paparazzo" era
espanhol. Mas as frases, numa língua estrangeira e próxima, facilitam,
para o espectador brasileiro, uma
atitude irônica e zombadora, como
se pertencessem a um português
macarrônico.
De fato, nas conversas destes dias,
o vídeo é sempre evocado com um
tom maroto e, sobretudo, burlesco.
À primeira vista, o cômico parece
servir para que o espectador esqueça a posição (incômoda e envergonhada) que ocupa: a de uma criança
com o olho colado no buraco da fechadura ou, pior, a de um adulto salivando à vista de frutos proibidos.
Digo logo: suspeito que o cômico,
neste caso, proteja o espectador de
um outro incômodo, maior e, de certa forma, mais triste.
Falando em frutos proibidos, é
importante salientar que o vídeo
não é nada "ousado". Um sujeito que
estivesse procurando por pornografia na internet certamente o descartaria sem hesitação e encontraria,
com facilidade, imagens bem mais
explícitas.
Alguém dirá que o interesse pelo
vídeo depende unicamente do fato
de que uma "celebrity" seria assim
"exposta". Os títulos (infames) que
acompanhavam os e-mails com o
link iam nesse sentido. Algo assim:
olhe só, Fulana está "dando" na
praia... Ou seja, os brasileiros seriam
fascinados pela "descoberta" de que
uma "celebrity" e um lindo moço se
desejam, beijam-se, acariciam-se
etc. Essa cena nos ofereceria a certeza confortante de que os deuses do
Olimpo não são muito diferentes da
gente. Seria um pouco como uma foto de Lula ou de Alckmin mordendo
um sanduíche cheio de mostarda e
ketchup ou entrando com urgência
num banheiro. "Te peguei!".
Pois é, não acredito em nada disso.
Por duas razões.
Primeiro, o vídeo nos mostra um
casal que não tem nada de "jet-set".
Eles não estão num iate na Sardenha nem numa enseada de sua ilha
privada. Estão numa praia qualquer.
Tomam um refresco, comem um
sorvete, tiram aquela foto que todos
já tiramos, esticando o braço e recuando as cabeças para pegar o sorriso dos dois. Há um momento em
que a moça puxa os cotovelos do
moço para que ele a abrace; o gesto é
comovedor de tão familiar.
Segundo, o distanciamento (facilitado pelos subtítulos irrisórios)
mostra o seguinte: o espectador se
arma de uma boa pitada de cômico
para encarar uma visão que, sem isso, poderia magoá-lo (em geral, rir é
um jeito de afastar de nós algo que
preferimos ignorar). E acontece
que, neste caso, o que queremos
afastar certamente não é uma extravagância sexual, explícita ou implícita, pois o vídeo não é de sexo; é um
vídeo de amor, um excelente vídeo
de amor. Ele poderia ou deveria ser
proposto como exemplo nas escolas
de cinema, não por suas qualidades
técnicas, mas porque é raro que os
cineastas consigam mostrar tão
bem os gestos do desejo entre duas
pessoas que se gostam muito e que
se amam (que seja por uma semana,
um ano ou uma vida, tanto faz).
A delicadeza dos beijos, dos toques, dos abraços do casal falam de
um momento de felicidade amorosa
que é o verdadeiro "escândalo" do
vídeo. É contra essas imagens de
amor que o título chulo e os subtítulos irônicos protegem o espectador,
guiando-o para que se convença de
que ele está assistindo a alguma devassidão ou se divertindo ao constatar que uma "celebrity" fez "aquilo"
que nem a gente.
Sem esse desvio da atenção, o vídeo seria, para quase todos os espectadores, tocante e talvez intoleravelmente triste. Por quê?
Simples: alguns podem ser frustrados no sexo, outros podem ser invejosos e estar a fim de dar um pontapé nos pedestais que eles mesmos
erigem, mas muitos sentem a falta
da delicada intimidade do desejo sexual quando ele acontece entre dois
que se gostam e se amam -muitos
são frustrados no amor.
Com a ajuda de título e subtítulos,
em suma, o tom burlesco dos comentários destes dias serve para que
a gente não perceba o que, de fato, o
"paparazzo" filmou: uma cena que,
ao ser enxergada, produziria em nós
a descoberta dolorosa de nossa carência. Pois não se trata de um momento de sexo, mas de uma tarde de
amor.
ccalligari@uol.com.br
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