São Paulo, domingo, 28 de setembro de 2008

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COMENTÁRIO

Ator revelou beleza da imperfeição humana

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Paul Newman surgiu para o cinema em meados dos anos 50, quando Marlon Brando e James Dean eram os belos rostos de uma juventude atormentada e insurgente que começava a abalar as estruturas do "American way of life".
Formado, como eles, no método realista de interpretação do Actors Studio de Lee Strasberg, Newman poderia ser apenas mais um dessa estirpe -e fez de fato papéis marcantes de jovem rebelde, como o pugilista Rocky Graziano de "Marcado pela Sarjeta" (Robert Wise, 1956) ou o prisioneiro Luke de "Rebeldia Indomável" (Stuart Rosenberg, 1967).
Mas desde muito cedo o ator mostrou que seu escopo era bem mais amplo, incorporando humor, ironia e malícia a uma série muito diversificada de personagens.
Do ex-jogador de futebol alcoólatra de "Gata em Teto de Zinco Quente" (Richard Brooks, 1958), que resiste aos avanços da sedutora mulher (Liz Taylor) por conta de uma relação mal contada com um amigo suicida, ao ambicioso e amoral jogador de sinuca Eddie Felson de "Desafio à Corrupção" (Robert Rossen, 1961), passando pelo cientista que faz um trabalho de agente duplo na Alemanha Oriental ("Cortina Rasgada", de Alfred Hitchcock, 1966), Newman conferiu matizes de charme e leveza aos papéis mais díspares.
Essa qualidade auto-irônica fez dele o ator ideal para estrelar releituras mais ou menos paródicas ou farsescas de gêneros clássicos como o faroeste ("Roy Bean", de John Huston, e "Butch Cassidy", de George Roy Hill) e o policial "noir" ("Harper", de Jack Smight, e "A Piscina Mortal", de Stuart Rosenberg).
Comparado com seus companheiros de geração, Newman parecia dar a suas criaturas características mais humanas, contraditórias e comezinhas. Não carregava nas costas os pecados e culpas do mundo.
Não por acaso, encarnou inúmeros alcoólatras, sem soterrá-los sob o peso da tragédia e do moralismo. Seus personagens pareciam sempre abertos à possibilidade de mudança, de redenção, de reinauguração.
Alguns cineastas perspicazes perceberam isso e o levaram a protagonizar, nos anos 80, belas histórias de "volta por cima" em papéis que se serviam da sua experiência, do seu desprendimento e dessa espécie de encanto do imperfeito que Newman tão bem encarnava.
Foi o caso, sobretudo, de "O Veredicto" (Sidney Lumet, 1982), em que o ator vive o advogado alcoólatra e decadente Frank Galvin, praticamente renascido das cinzas ao se engajar de corpo e alma numa causa, e em "A Cor do Dinheiro" (Martin Scorsese, 1986), em que o velho jogador Eddie Felson, de "Desafio à Corrupção", passa os segredos da sinuca e da corrupção humana a um jovem discípulo (Tom Cruise).
Como bandoleiro, cientista, piloto de automóvel, chefe mafioso, advogado, atleta ou detetive, Newman despia seus personagens da solenidade e parecia levá-los a sério somente até certo ponto. Em vez de exaltar a grandiosidade e o heroísmo, suas criaturas consagravam o que há de belo e divertido nas limitações humanas.
Personagens nem sempre (aliás quase nunca) edificantes, mas invariavelmente plenos de energia e vitalidade, ainda que às vezes momentaneamente soterradas.
Por trás das câmeras, como cineasta bissexto, mostrou-se um sensível diretor de atores -sobretudo de Joanne Woodward, sua mulher desde 1958- em dramas psicológicos familiares, mas não chegou a deixar uma marca pessoal.
Talvez nenhum outro ator tenha conciliado tão bem como Paul Newman o magnetismo pessoal -que ia além da evidente beleza, atingindo o que os americanos chamam de "star quality"- e a capacidade de compor seres humanos tão ricos e palpáveis quanto aqueles com quem cruzamos na rua diariamente.


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