São Paulo, sábado, 28 de outubro de 2006

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Nuno Ramos leva teatro à galeria

Artista exibe instalação "Ai de Mim!" na galeria Fortes Vilaça, que pede o deslocamento do espectador para ser vista

Objeto tem lado teatral, com vozes dos atores Luis Melo e Helena Ignez, mas precisa de mais silêncio para ser observada com cuidado


SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Na "Análise dos Espetáculos", Patrice Pavis fala da importância para o crítico não considerar o texto, lido previamente em casa, como o essencial do espetáculo teatral.
Palavras impressas e as proferidas por atores em público não são o mesmo objeto estético: o volume dos corpos, o lugar que eles ocupam no espaço, as suas formas cambientes que interagem interferem substancialmente no sentido do que é dito, muito além da interpretação psicológica dos atores e diretor.
Por isso, a instalação "Ai de Mim!", de Nuno Ramos, na galeria Fortes Vilaça, vista pelos olhos de um crítico teatral, equivale a um tratado estético sobre as condições materiais da representação. Está na mesma alta esfera dos tratados de Gertrude Stein, que aprofundam os sentidos que a apresentação pública pode ter por si só, independentemente de seu conteúdo, como se atores fossem móbiles sonoros -e não é por acaso que a brilhante encenação de Márcio Aurélio para esses textos se chamou "Peças".
A ambigüidade do termo é perfeita para a busca de Nuno Ramos. Apresenta aqui duas peças monumentais, uma de ferro que ocupa dois níveis da pequena galeria; outra de vidro no segundo andar, que a espelha em suas retas e curvas. A relação com o público é prevista teatralmente: embora as peças não se desloquem, é o deslocamento do observador que acrescenta sentidos. Para se ver o ferro, é necessário subir uma escada, contornando sua presença imponente, e só então é que se descobre a outra, acuada em um canto, fragilizada pela localização, matéria e redução em escala.

Teatro
Então irrompe o teatro: as peças falam, pela voz de Helena Ignez e Luis Melo, ouvidas em gravação que sai pelo longo cano-tromba de cada estrutura. "Ai de Mim!", clamam as esculturas, chamando atenção para si mesmas como um enigma concretizado em objeto.
No entanto, o artista segue na pesquisa de intercâmbio entre as formas: as peças dialogam, trocam farpas e insultos. Um homem, uma mulher: conflito ancestral que o texto de Nuno Ramos, feito em parte por citações que um folheto distribuido na entrada aponta, exacerba do mais erudito ao mais vulgar.
Ésquilo, Tchekov, Ibsen, Nelson Rodrigues e Lupicínio Rodrigues, Brecht e Beckett, entre outros, retrucam deixas sofridas, impregnando as formas de sentido. E quando o observador atento já começa a atribuir sentimentos para cada matéria -o ferro, masculino e despótico, é valentemente desautorizado pela ternura do vidro-, o texto se encerra e as vozes invertem suas "bocas", recomeçando outra rodada de negociações.
Uma brilhante instalação que mereceria um cuidado especial: espaço mais amplo, isolamento acústico e solicitação para desligamento dos celulares, compartilhando assim a luta do teatro pela educação contemplativa do prezado público. Infelizmente, as galerias, mesmo as mais badaladas, ainda estão pouco sintonizadas com essa missão. As portas permanecem abertas na galeria Fortes Vilaça para o ruidoso trânsito da Fradique Coutinho; e os funcionários, em estresse de vendedores de televisão, se mantém falando em voz alta.
O teatro precisa abrigar a busca de Nuno Ramos: podemos ter aqui mais um caso de artista plástico em vias de subir ao palco, para contribuir com seu lado mais conceitual, como fizeram Tadeusz Kantor e Gerald Thomas. Enquanto isso, quase menosprezado em um espaço indevido, sua obra fica à espera de uma escuta que multiplique seus sentidos. Vá checar em um sábado: talvez haja mais silêncio.


AI DE MIM! - NUNO RAMOS    
Quando: ter. a sex., das 10h às 19h; sáb., das 10h às 17h; até 3/11
Onde: galeria Fortes Vilaça (r. Fradique Coutinho, 1.500, SP, tel. 0/xx/11/ 3032-7066)
Quanto: entrada franca


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