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DRAUZIO VARELLA
Premonições
Não conseguia pensar em outra coisa que não fosse o acidente fatal prestes a ocorrer
PREVER ACONTECIMENTOS trágicos é experiência angustiante. Quando era menino, li num
gibi de terror a história de um homem que correu para baixo de uma
árvore para se proteger da chuva no
exato momento em que um raio a
partiu ao meio. O impacto lançou
seu corpo a metros de distância.
Horas mais tarde, recuperou a
consciência e voltou trôpego para
casa. Tomou um prato de sopa servido pela esposa, foi para a cama e dormiu. Acordou no meio de um pesadelo em que uma senhora de vestido
preto era atropelada por um ônibus
em alta velocidade. As imagens do
sonho foram tão vivas que ele levou
tempo para perceber que não se encontrava no local do acidente.
Pela manhã, a caminho do escritório, de chapéu, o homem se deteve
num cruzamento de pedestres ao
ser tomado por uma tontura tão forte que o obrigou a se agarrar num
poste. Sentiu as mãos trêmulas, o
corpo gelado, a voz engasgada e a impressão de que algo terrível aconteceria naquele instante. O mal-estar
não atraiu a atenção dos transeuntes que aguardavam para atravessar,
exceto a de uma senhora de olhar estranho que perguntou se ele precisava de ajuda. Era a mulher do pesadelo, em seguida atropelada por um
ônibus desgovernado.
Dias mais tarde, sonhou com um
trem que partiria de Londres às 8h
daquela manhã, para se chocar com
uma composição em sentido oposto.
Acordou com o terrível choque metálico e os gritos dos sobreviventes
entre as ferragens, olhou o relógio e
correu para a estação.
Na administração, fez de tudo para convencer os funcionários a cancelar a viagem; insistiu tanto que
acabou expulso do escritório. Aos
berros, na plataforma, correu entre
os passageiros implorando para que
não embarcassem. Desvairado, segurava-os nas portas do trem e tentava arrancá-los das poltronas; no
fim, agarrou-se ao maquinista na cabine de comando com tanta fúria
que a polícia teve dificuldade para
retirá-lo de lá. Nos quadrinhos da
página seguinte apareciam os trens
destroçados e a manchete do jornal:
"O maior desastre ferroviário da história da Inglaterra".
Sua vida se tornou um inferno. Sonhava com operários que despencavam de andaimes, mineiros soterrados, colisões e desmoronamentos.
Corria até o local das futuras tragédias na tentativa de impedi-las, mas
era recebido como lunático; ninguém lhe dava ouvidos. Não conseguia trabalhar, conviver com a família nem pensar em outra coisa que
não fosse o acidente fatal prestes a
ocorrer. Acabou ensandecido, preso,
e enviado para um manicômio.
Bem guardadas as devidas proporções, às vezes me lembro dessa história em quadrinhos lida na infância
e me identifico com o personagem.
Nunca fui atingido por um raio
nem sou capaz de prever colisões de
automóvel, desastres aéreos ou o
destino de balas perdidas; no entanto, às vezes olho para uma pessoa
aparentemente saudável, percebo
que ela se encontra em rota de colisão com o sofrimento ou a morte e
tenho ímpeto de agir como o inglês
dos quadrinhos.
Examino uma mulher de 60 anos
com os lábios roxos, pele com tonalidade vermelho-azulada nas maçãs
do rosto e ao redor da região em que
as sobrancelhas se encontram, e não
consigo deixar de vê-la com o tubo
de oxigênio, tossindo até perder o
fôlego por causa do enfisema ou do
câncer de pulmão provocado pelo
cigarro.
Diante de um homem de 50 anos
obeso, diabético, que não toma os
medicamentos receitados nem faz
os controles de rotina, como deixar
de imaginá-lo cego ou com insuficiência renal numa sala de diálise?
Sento ao lado do taxista fumante,
sedentário, com excesso de gordura
abdominal, que se confessa hipertenso e portador de colesterol elevado, e, sem querer, constato que os fatores de risco estão reunidos de tal
forma que só falta acontecer o ataque cardíaco ou o derrame cerebral.
Pensamentos mórbidos de quem
enxerga o mundo ao redor pelo viés
da profissão?
Pode ser, mas como evitar? O
mesmo acontece com muitos médicos com quem compartilho as frustrações de antever as tragédias pessoais dos que fumam e bebem o
tempo todo, dos que comem muito
mais do que o necessário, passam os
dias sentados e acumulam gordura
abdominal.
Ainda bem que somos racionais,
por formação. Se agíssemos da forma tresloucada do personagem inglês para tentar convencê-los a largar o cigarro, fazer exercícios, comer
menos, beber com moderação e fazer exames preventivos com regularidade, provavelmente acabaríamos
no hospício, como ele.
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