São Paulo, domingo, 28 de outubro de 2007

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Crítica/"Go Go Tales"

Abel Ferrara funde humor e tensão em obra de resistência

Novo filme do diretor de "Maria" apresenta o universo delirante de um dono de uma boate de striptease em crise

PAULO SANTOS LIMA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

"Go Go Tales" é um filme de trincheira. Uma obra de resistência e explosão que confina, num espaço e tempo limitados, toda uma experiência que o mestre italiano Abel Ferrara desenvolve há décadas: uma criação tão direta e cética (vide "Blackout" e "Maria", lançados em DVD) que causa grandes transtornos às duas pontas do sistema de produção cinematográfico (a dos que financiam os filmes e a dos que os vêem).
Ferrara adota aqui, quase inusitadamente, um viés essencialmente cômico, mas não menos tenso, com inúmeras "gags" improvisadas por um time fenomenal de atores para mostrar um dia na vida de Ray Ruby (Willem Dafoe) em sua boate de striptease, o Ruby's Paradise. Um dia de cão, pois as dançarinas ameaçam uma paralisação pelo salário atrasado, a proprietária quer o imóvel de volta, o irmão mecenas anuncia o fim do subsídio e um bilhete da loteria que tiraria a casa do vermelho simplesmente desaparece. Tudo ao mesmo tempo.
A ameaça de morte do Ruby's Paradise é o fim de um paraíso, pois ali é, sobretudo, o espaço supremo das artes, onde os shows de corpos femininos no palco abrem caminho para as garotas desenvolverem seus mais nobres talentos, ou onde é permitido que um segurança exercite-se na cozinha ou um gângster encene Shakespeare.
Seria uma tragédia esse nightclub cerrar suas portas, e daí Ray fica cindido entre uma tensão fúnebre e uma alegria arco-íris para prolongar a vida de seu paraíso (quase) perdido.
Se está claro, aqui, que Ray Ruby e seu clube são Ferrara e seu cinema, as imagens são construídas ao estilo do diretor.
Em clima tenso e meio anestesiado (ou cheirado e bêbado, ou em transe), temos uma câmera que passeia, olhando dos belos traseiros das moças aos espaços quase abstratos da casa, em travellings que flanam de lado a outro, por vezes mostrando uma coisa enquanto se ouve um diálogo de alguém ali do lado, fora do enquadramento.

Cinema de ponta
Essa liberdade tem motivo. Homem inclinado ao álcool, mulheres e outras bagunças, tudo isso levado aos seus filmes, Ferrara, nesses anos, fez o que bem quis e pagou um preço: sua arte é viabilizada graças aos bons olhos das produtoras européias e desagrada à beça os produtores americanos. Assim, o jeito é se aquartelar numa boate e cometer todas as liberdades possíveis, o que, na prática, é fazer um cinema de ponta -digno dos maiores cineastas, é bom lembrar.
A primeira tomada de "Go Go Tales" é a imagem-síntese que só um grande mestre seria capaz de levar à tela: Willem Dafoe/Ray Ruby tombado no sofá, exausto, semblante atacado pelo peso do mundo. Uma agonia que o filme confirmará ser breve, pois minutos depois Ray subirá ao palco para apresentar sua arte. Como Ferrara, que ensaia um novo filme de gângster e altas violências para 2008.


GO GO TALES
Produção:
Itália/EUA
Direção: Abel Ferrara
Com: Willem Dafoe, Bob Hoskins, Matthew Modine
Onde: hoje, às 20h50, no Cine TAM; amanhã, às 21h20, IG Cine
Avaliação: ótimo


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