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FERREIRA GULLAR
Um operário chega ao paraíso
O conflito entre a classe operária e a burguesia pertence ao passado das ideologias
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O LEITOR já deve ter percebido
que oscilo entre os resmungos e a reflexão, e isso vale
também tanto para filhos e netos,
companheira, amigos quanto para o
próprio país. E ocorre aleatoriamente, ao sabor dos acontecimentos e de
súbitas sacações, nem sempre originais. É como na poesia: cheiro de
tangerina tem alguma coisa de novo? Claro que não, mas pode me arrastar a inesperadas indagações.
E mais ou menos assim foi quando
reparei que o conflito que se daria
entre a classe operária e a burguesia
dar-se-ia agora -depois da derrocada do socialismo real- entre pobres
e ricos. Alguma novidade? Não, mas
leva a outras coisas.
Por exemplo: o que representa a
chegada de Lula ao poder no Brasil?
É a vitória da classe operária? Mas o
vice dele não é um empresário rico?
E a política econômica que seu governo pratica não é a mesma do governo anterior, que ele denunciava
como neoliberal? Então, o que de fato ocorreu, quem chegou ao poder
no país com as eleições de 2002?
É essa uma pergunta ociosa? Pode
ser, mas quem perde tempo especulando acerca de um cheiro de tangerina é capaz de tudo. Vou tentar respondê-la, ainda que me faltem os recursos próprios a um cientista social. E a primeira coisa que me ocorre é a lembrança de que, num passado já longínquo, Getúlio Vargas, ao
mesmo tempo em que concedeu aos
trabalhadores direitos de que não
usufruíam, passou a manipulá-los,
usando, para isso, o imposto sindical
e o pelego -anulando assim a ação
aliciatória dos comunistas. Deposto
pelos militares em 1945, voltou cinco anos depois, nos braços do povo,
para, em 1954, suicidar-se.
O seu herdeiro entre os trabalhadores era João Goulart que, chegado
à presidência com a renúncia de Jânio Quadros, foi também derrubado
pelos militares em 1964. Se àquela
altura, já no contexto da Guerra Fria
(que alimentava o anticomunismo),
pelegos e comunistas se haviam tornado aliados, foram indistintamente expulsos da vida sindical e de toda
atividade política pela ditadura que
se implantara.
Esse fato assinala, sem dúvida, o
fim de um período na história da luta sindical no Brasil. Os comunistas
vão para a clandestinidade, os sindicatos passam às mãos de dirigentes
coniventes com o regime autoritário. Acabam-se as greves e calam-se
as reivindicações.
O ressurgimento da luta sindical,
que se verifica no ABC paulista, na
década de 1970, não tem qualquer
vínculo com aquele passado: brota
da pregação da esquerda católica
junto a uma nova liderança sindical,
a que se juntarão militantes contrários ao regime militar, alguns advindos da fracassada luta armada.
Aliam-se ideólogos sem massa e um
líder sindical sem ideologia, mas
com massa, que atendia pelo apelido
de Lula -e nasce o PT. Esse líder
sindical sem ideologia poderia lembrar de algum modo o antigo pelego,
com a diferença fundamental de que
não era manipulado pela classe dominante, e com um traço semelhante: o uso da liderança em causa própria.
O que importa, porém, é que esse
sindicalismo se opõe ao governo militar e, ao reivindicar os direitos dos
trabalhadores, exige implicitamente
a volta da democracia, além de reafirmar o sonho socialista de uma sociedade justa e igualitária. Mas, finda a ditadura, quando, em 1989, Lula
se candidata à Presidência da República com um discurso radical de esquerda, é derrotado, e o mesmo
ocorre, sucessivamente, em 1994 e
1998.
Eis então que, em 2002, ele obriga
o PT a aceitar as suas condições para
voltar a candidatar-se: chama um
empresário para a chapa presidencial, transmuda-se em Lulinha paz e
amor e adota um programa de governo palatável para a maioria do
eleitorado.
Se se observa bem, o ultimato que
Lula deu ao PT foi um choque de
realidade, com que assume seu verdadeiro papel de líder conciliador,
não-ideológico e pragmático, ao
mesmo tempo em que põe o PT face
a face com sua condição de partido
ideologicamente superado pelo fim
do socialismo real.
O empresariado, que se assustara
com uma possível vitória de Lula,
verificou em seguida que não havia o
que temer. Houve, sem dúvida, uma
mudança na correlação de forças,
mas uma mudança política apenas,
em que um líder de origem operária,
em vez de ser usado pelo poder, agora o assume, não para mudar o sistema econômico, mas, sim, para preservá-lo.
O conflito classe operária versus
burguesia pertence ao passado das
ideologias, restando a Lula o papel
conciliador de presidente de todos
os brasileiros e protetor dos pobres,
que se satisfazem com três refeições
por dia.
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